Camiões do lixo infernizam madrugadas de condomínio de luxo em Cascais
Tribunal da Relação tinha mandado suspender actividades entre as 20h e as 7h, mas Supremo volta a permiti-las à autarquia, que foi quem vendeu terreno para empreendimento.
Moram num condomínio de luxo de Cascais com vista para a baía, piscina, jardim, ginásio e mini-campo de golfe e prometeram-lhes tudo aquilo que pensavam que o dinheiro podia comprar: segurança e tranquilidade. Uma estação de resíduos urbanos do outro lado da rua, a escassos metros de dezenas de apartamentos, trocou-lhes as voltas.
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Moram num condomínio de luxo de Cascais com vista para a baía, piscina, jardim, ginásio e mini-campo de golfe e prometeram-lhes tudo aquilo que pensavam que o dinheiro podia comprar: segurança e tranquilidade. Uma estação de resíduos urbanos do outro lado da rua, a escassos metros de dezenas de apartamentos, trocou-lhes as voltas.
Há oito anos que o pesadelo de parte dos moradores do Cidadela Parque dura seis dias por semana, embora já tenha sido pior. Começa quando os camiões do lixo iniciam o dia de trabalho às 5h e dura duas horas, até saírem para irem limpar as ruas da vila. O barulho vindo do recinto ao ar livre acorda muitos dos que têm quartos virados para aquilo que um dos moradores, Henri Poudensan, designa por unidade industrial. Os gritos dos trabalhadores misturam-se com o ruído dos motores dos veículos pesados, que apitam na marcha-atrás, e a chinfrineira das máquinas de varredura completa a mal amada sinfonia.
A indignação de quem pagou em média meio milhão de euros para aqui habitar fez nascer um processo em tribunal, desencadeado por três famílias. Responsabilizada pela poluição sonora e condenada em primeira e em segunda instância a cessar a laboração entre as 20h e as 7h, para preservar o direito dos moradores ao repouso, a Empresa Municipal de Ambiente de Cascais viu no final do mês passado a justiça aligeirar a mão. Embora tenha mantido as indemnizações fixadas na primeira instância, que oscilam entre os mil e os 2500 euros, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu permitir a laboração no recinto, desde que as organize “de forma a que sejam evitadas, dentro do possível, as fontes de ruído” e dote as instalações em causa de barreiras de protecção sonora.
Na decisão pesou o facto de a estação de limpeza urbana e recolha de resíduos ser usada há mais de 20 anos, muito antes de o condomínio de luxo ter nascido.
“O mais irónico é que o terreno onde ele foi erguido pertencia à Câmara de Cascais. Foi a autarquia que o licenciou naquele local – e fez muito dinheiro com isso. Depois disso ainda aumentaram a área de implantação da estação de resíduos”, observa Henri Poudensan, que ainda se lembra da noite em que a mulher, desesperada, saiu à rua de pijama com os dois filhos pequenos para tentar travar a marcha a um camião do lixo.
Ficou provado em tribunal que foram vários os esforços da empresa municipal ao longo dos últimos anos para amenizar o ruído, como estacionar os camiões de forma a que não sejam precisas manobras de marcha-atrás para os pôr novamente a circular. Guilherme Rodrigues, administrador da empresa, diz que também já foram ali colocadas barreiras acústicas: “Não ficámos à espera da decisão do Supremo para introduzir as medidas de mitigação que vieram a ser exigidas”.
“Está previsto em orçamento de investimentos para 2017 a aquisição de varredouras eléctricas, que vão reduzir significativamente o ruído naquele local e por onde opera a máquina”, acrescenta.
Henri Poudensan e respectiva família acham que, sendo o recinto ao ar livre, será muito difícil resolver o problema sem transferir a estação dali para fora. “A minha mulher queria vender o apartamento. Mas íamos perder dinheiro”, contabiliza. “Agora psicologicamente é complicado não poder dormir”.
Em tribunal, a empresa municipal chamou-lhes egoístas: acusou-os de tentarem prejudicar toda a comunidade de Cascais, uma vez que tem necessidade imperiosa de começar os trabalhos de madrugada. “Varrer as ruas, passeios e esplanadas com meios manuais, mecânicos e à mangueirada durante o dia, com os veículos e pessoas nos locais públicos, é impossível e impensável”, alegou.
A morar num quinto andar, Henri Poudensan admite que a situação melhorou um pouco em relação aos primeiros tempos, mas diz que nem o segundo par de janelas que instalou por baixo das primeiras, com vidros duplos, lhe garante descanso: “Depende dos dias”. O pior são os chamados picos de ruído, sons fortes que se ouvem com mais impacto por terem lugar a uma hora em que não se diluem no barulho diurno. A súbita entrada em funcionamento de um camião, por exemplo, é “susceptível de causar forte incomodidade humana, pela consequente perturbação do sono, do descanso e do bem estar das pessoas que lhes estão expostas”, explicou um técnico que analisou a situação. O facto de esses picos não ultrapassarem os limites máximos permitidos de decibéis “não desresponsabiliza” quem os provoca, entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa quando se pronunciou sobre este caso: “O direito ao repouso, ao descanso e ao sono mesmo assim pode ser ofendido”.
Sossego versus propriedade
Neste processo os juízes confrontaram-se com um conflito entre dois direitos, ambos consagrados na Constituição: o direito à saúde, ao ambiente e qualidade de vida, por um lado, e o direito de propriedade, por outro, consubstanciado neste caso no exercício de uma actividade económica relacionada com os resíduos urbanos. Nenhum deles é, porém, um direito absoluto e ilimitado. Mas enquanto os tribunais de primeira e segunda instância decidiram proibir a empresa municipal a laborar durante a madrugada, em prol do direito ao descanso das famílias do condomínio, o Supremo Tribunal de Justiça resolveu impor-lhe apenas medidas mitigadoras do ruído nesse horário, por estar em causa uma actividade que assegura o bem-estar público, a higiene e a salubridade.