Dentro de casa
Mais um inteligentíssimo conto moral sobre o perdão filmado por um cineasta que parece fazê-los com uma perna às costas.
O que é que a Morte de Um Caixeiro Viajante de Arthur Miller vem fazer num conto moral na Teerão contemporânea? Vai-se a ver, tudo, porque o novo filme de Asghar Farhadi (Uma Separação, 2011; O Passado, 2013) é percorrido visceralmente por esta ideia de vidas banais que passaram “ao lado”, e porque o seu casal central, Rana e Emad, são actores numa produção da peça que está à beira de se estrear. Não é uma surpresa que o cineasta iraniano utilize os ensaios e as representações da peça como espelho, reflexo, comentário da vida quotidiana de Rana e Emad (ah, o teatro e a vida, esse dispositivo que já está puído de tanto uso). O que é de reter é como isso encaixa tão bem em mais uma das cascatas de pequenos mal-entendidos ou omissões que Farhadi tornou a sua imagem de marca.
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O que é que a Morte de Um Caixeiro Viajante de Arthur Miller vem fazer num conto moral na Teerão contemporânea? Vai-se a ver, tudo, porque o novo filme de Asghar Farhadi (Uma Separação, 2011; O Passado, 2013) é percorrido visceralmente por esta ideia de vidas banais que passaram “ao lado”, e porque o seu casal central, Rana e Emad, são actores numa produção da peça que está à beira de se estrear. Não é uma surpresa que o cineasta iraniano utilize os ensaios e as representações da peça como espelho, reflexo, comentário da vida quotidiana de Rana e Emad (ah, o teatro e a vida, esse dispositivo que já está puído de tanto uso). O que é de reter é como isso encaixa tão bem em mais uma das cascatas de pequenos mal-entendidos ou omissões que Farhadi tornou a sua imagem de marca.
Aqui, tudo começa com uma obra pública que torna inabitável o prédio onde o casal mora. Forçados a encontrar uma casa nova de um momento para o outro, Rana e Emad aceitam a proposta de um colega de elenco que tem um apartamento livre — só que a antiga inquilina deixou para trás não apenas os seus pertences como a reputação de mulher dissoluta (que, no Irão dos ayatollahs, é uma coisa muito mais séria). A partir de um ponto de partida que tem tudo de fait-divers trivial, Farhadi desenrola pacientemente um novelo moral que explora o seu tema recorrente: o conceito de perdão. O dominó de O Vendedor aproxima-se mais de About Elly (2009), o filme que primeiro chamou a atenção do Ocidente para o realizador; a ameaça de desabamento com que o novo filme começa é uma metáfora do que se seguirá, porque a vida de Rana e Emad vai literalmente desabar com a mudança e tudo vai ser posto em causa. Não é por acaso que a câmara de Hossein Jafarian está sempre nervosa, à mão, em movimento dentro de casa. A casa, que deveria ser o refúgio, é precisamente por onde tudo começa a desabar e onde se tenta repor a normalidade num extraordinário terceiro acto — o melhor momento do filme — que apenas sublinha a futilidade de tentar voltar atrás.
O Vendedor não traz muito de novo ao cinema de Asghar Farhadi; aqui e ali parece sentir-se uma “fórmula resolvente”, um acomodamento a um classicismo do qual não se afasta grandemente e que, é verdade, já quase não se vê hoje em dia; e a metáfora do teatro, apesar da justeza com que é integrada, dá ao filme um aroma bafiento. Mas, no caso de Farhadi, isso está por enquanto muito longe de constituir um problema: O Vendedor continua a sua linhagem de histórias complexas contadas de maneira simples, com uma inteligência discreta, com actores permanentemente excelentes.