Donald Trump, as ovelhas e os lobos
Donald Trump foi eleito com um mandato muito claro no que respeita à política externa: um mandato “isolacionista”, “anti-multilateralista” e “unilateralista”.
Em uma das suas mais célebres fábulas, o autor grego Esopo conta-nos o episódio de uma negociação de paz entre as ovelhas e os lobos. Tendo conseguido chegar a acordo, as primeiras aceitaram desarmar-se e, como manifestação de boa fé, a pedido dos segundos, dispensaram os seus cães de guarda. Nessa noite, os lobos atacaram o rebanho e comeram as ovelhas todas.
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Em uma das suas mais célebres fábulas, o autor grego Esopo conta-nos o episódio de uma negociação de paz entre as ovelhas e os lobos. Tendo conseguido chegar a acordo, as primeiras aceitaram desarmar-se e, como manifestação de boa fé, a pedido dos segundos, dispensaram os seus cães de guarda. Nessa noite, os lobos atacaram o rebanho e comeram as ovelhas todas.
Donald Trump foi eleito com um mandato muito claro no que respeita à política externa: um mandato “isolacionista”, “anti-multilateralista” e “unilateralista”. Deste modo, para se compreender a relação da próxima administração norte-americana com o mundo a tarefa essencial consiste em perceber bem estes conceitos.
Nos termos aqui definidos, o “Isolacionismo” é a mais antiga grande estratégia dos EUA, bem como a que durou mais tempo, tendo sido adoptada logo no período da independência e permanecido como dominante até à Segunda Guerra Mundial, com um intervalo no conflito de 1914-1918. Ela foi formulada no discurso de despedida de George Washington, em 1793, e transformada em doutrina – a “doutrina Monroe” – trinta anos depois. No essencial, baseia-se na ideia de que pela sua geografia abençoada, sem rival no hemisfério ocidental e separada da Europa e da Ásia pelos enormes oceanos Atlântico e Pacífico, não existe nenhuma região fora do continente americano que seja vital para a segurança dos Estados Unidos, logo não há interesse num envolvimento nos assuntos exteriores a este espaço regional. De qualquer forma, convém lembrar que o “Isolacionismo” se confinava à Europa. Na América Central e do Sul, bem como na costa oriental do Pacífico, os EUA tiveram uma longa história de “pequenas guerras de paz” destinadas à manutenção da ordem e ao livre acesso aos oceanos.
O “Anti-Multilateralismo” corresponde à oposição à arquitectura multilateral da ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial, ironicamente uma construção dos Estados Unidos, nomeadamente às suas instituições, regras e procedimentos, tais como as alianças permanentes como a NATO, as organizações internacionais do género da ONU, os vários tipos de acordos relativos ao comércio livre (NAFTA, TPP, TTIP), às alteração climáticas (Acordo de Paris) ou à justiça internacional (TPI) e mesmo ao uso multilateral da força militar.
O “Unilateralismo” corresponde a uma determinada concepção de uso do poder ou da força no exterior, mais concretamente à margem das alianças permanentes ou das organizações internacionais sempre que for necessário. No caso de uma intervenção militar, esta é decidida exclusivamente pelos interesses nacionais norte-americanos. Não significa isto que os EUA se envolvam em conflitos sozinhos. Implica antes que preferem “coligações de vontade”, de geometria variável, em que os parceiros aderem por razões de interesses semelhantes ou para sedimentar a relação com a potência dominante. Assim, a missão faz a coligação e não a coligação faz a missão.
Estes três conceitos devem ser as lentes que nos permitem olhar de uma forma estruturada a política externa da Administração Trump, possibilitando identificar as continuidades e mudanças, pois correspondem ao que mais se aproxima do que conhecemos do pensamento do presidente-eleito, que consiste numa mistura de elementos de cada um deles. Todavia, tal tem se ser entendido de uma forma flexível uma vez que existem constrangimentos significativos à aplicação de parte deste quadro conceptual.
Desde logo, o mundo de hoje é muito diferente daquele que existiu no passado, não sendo possível ser-se “isolacionista” na conceptualização dos Pais Fundadores. Isto é ainda mais verdade para as grandes potências que, por definição, têm interesses à escala mundial e necessitam de defendê-los em qualquer parte do mundo onde eles estejam ameaçados. Acresce que o “isolacionismo” não é compatível com o “excepcionalismo americano”, nem tão pouco com a ideia de tornar “a América grande outra vez”, sendo que a máxima grandeza dos Estados alcança-se com a vitória na guerra.
Em segundo lugar, pôr em questão o edifício multilateral, ou mesmo uma parte deste, terá custos muito elevados para os próprios Estados Unidos. Não só porque ele está para a ordem internacional actual como a parede-mestra para uma casa, como também devido ao facto de muitas das principais ameaças dos nossos dias não poderem ser resolvidas sem a cooperação de um número vasto de países. Mesmo que se ponham de parte problemas como as alterações climáticas ou o combate à pobreza e às pandemias – temas tradicionalmente pouco caros a administrações republicanas – o mesmo se aplica a questões fundamentais de segurança como a proliferação nuclear e o combate ao terrorismo.
Deste modo, a próxima administração norte-americana terá elementos “isolacionistas” e “anti-multilateralistas”, mas tenderá a ser sobretudo “unilateralista”. Madeleine Albright disse um dia: “Act multilaterally if we can; unilaterally if we must”. O slogan de Donald Trump deverá ser: “Isolationism if we can; unilateralism if we must”
As ideias defendidas por Trump desde finais da década 1980 e reiteradas durante a campanha eleitoral validam esta perspectiva. As áreas em que o seu pensamento tem sido mais persistente são a oposição à globalização e aos acordos de comércio livre (na Convenção Republicana afirmou: “O Americanismo, e não o globalismo, será o nosso credo”) e a desconfiança das “alianças permanentes”, como a NATO ou os acordos bilaterais com o Japão e a Coreia do Sul (chegou ao ponto de ameaçar não cumprir o artigo V da NATO caso os membros europeus não assumam um maior custo com as despesas da organização). Além disso, defendeu uma aproximação à Rússia (elogiando Putin e descrevendo-o como “um líder com autoridade”), estabeleceu como prioridade o combate contra o Daesh e o Islão radical em geral (acusando Obama e Hillary de terem medo de dizer as duas palavras juntas – Islão radical), ameaçou rasgar o acordo nuclear com o Irão (descrito como “um sinal de fraqueza dos EUA”), prometeu abandonar o acordo de Paris sobre as alterações climáticas (a que chamou de “uma invenção dos chineses”) e sustentou um endurecimento da política relativa à China (que acusou de estar a “estuprar” os Estados Unidos).
Os indícios de que uma boa parte desta agenda é para ser executada já começaram a aparecer, como o demonstra a escolha de Rex Tillerson para Secretário de Estado. Se passar no Senado, o director-executivo da Exxon Mobil, cuja proximidade a Putin é do conhecimento geral, será o primeiro rosto da diplomacia norte-americana. O que é uma indicação muito importante sobre o futuro da política externa do país.
Os EUA têm estado para a ordem internacional como os cães de guarda para as ovelhas na fábula de Esopo. Sem eles, o mundo ficará à mercê dos lobos (as potências revisionistas, como a Rússia e a China). E será apenas uma questão de tempo para começarem a “comer as ovelhas”.
Universidade Nova e IPRI-UNL