No 110º aniversário do nascimento de Fernando Lopes-Graça
O ataque a todas as formas de nacionalismo, fosse político, fosse artístico, não poupava ninguém, nem mesmo o “nacionalismo castanholeiro” (sic) de Manuel de Falla, estava em contradição com a primeira obra de Lopes-Graça, intitulada Variações sobre um tema popular português.
“Decididamente: eu sou um desnaturado, um déraciné... A-pesar-de nado e criado em Portugal, cada vez sinto mais a minha incapacidade para sentir e compreender as coisas portuguesas… Atribuo eu esta deficiência do meu espírito à ausência de três virtudes rácicas fundamentais: versejar, gostar de toiros e amar o fado.”
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“Decididamente: eu sou um desnaturado, um déraciné... A-pesar-de nado e criado em Portugal, cada vez sinto mais a minha incapacidade para sentir e compreender as coisas portuguesas… Atribuo eu esta deficiência do meu espírito à ausência de três virtudes rácicas fundamentais: versejar, gostar de toiros e amar o fado.”
Nascido em Tomar, a 17 de Dezembro de 1906, assim se exprimia Lopes-Graça aos 24 anos, num artigo sobre o filme A Severa de Leitão de Barros (música de Frederico de Freitas) publicado na Seara Nova em Março de 1931. Esta rotura com uma identidade nacional dada – a hegemónica – era explicitada na sequência de um período de grande ativismo político, iniciado por Lopes-Graça uns anos antes e marcado sobretudo pela sua intervenção à frente do jornal republicano antifascista A Acção (por ele próprio fundado no final de 1928 em Tomar) e pelo seu envolvimento na “Organização Comunista de Tomar” (então reorganizada pelo jornalista Manuel Alpedrinha) que lhe valem o encerramento do jornal e a prisão. Dá entrada no Aljube a 3 de Novembro de 1931 e logo depois é desterrado para Alpiarça. A sua detenção ocorre no Conservatório Nacional de Lisboa, no próprio dia em que ganha o concurso para professor de Piano, lugar que nunca chegará a ocupar.
O ataque a todas as formas de nacionalismo, fosse político, fosse artístico, que, nas páginas de A Acção, não poupava ninguém, nem mesmo o “nacionalismo castanholeiro” (sic) de Manuel de Falla, estava em crassa contradição com a primeira obra de Lopes-Graça, intitulada Variações sobre um tema popular português – composta, aliás, no mesmo ano em que o autor aplaudira entusiasticamente a ópera Inês de Castro de Rui Coelho (1927). Nela se refletia o nacionalismo então em moda no Conservatório e no meio musical. “Buscar a inspiração nas raízes nacionais” era um programa que já vinha de Alfredo Keil e Viana da Mota, reiterado por Eugénio Vieira, Armando Leça, Alexandre Rey Colaço e até Luís de Freitas Branco, com as suas Suites Alentejanas (1919, 1927). Ao nacionalismo “populista” de Rui Coelho contrapunha-se o “nacionalismo do escol”, do grupo “Renascimento Musical”, com ligações ao Integralismo Lusitano, e onde sobressaíam Ivo Cruz e Mário Sampaio Ribeiro. Em 1928, porém, inspirado pelo ideário internacionalista, Lopes-Graça rompia radicalmente com todas as formas de nacionalismo. As suas Variações sobre um tema popular português surgiam, deste modo, não como o início de um projeto artístico próprio, mas antes simplesmente como o culminar do período de formação do compositor.
Contudo, já em 1937, ano em que se exila em Paris, Lopes-Graça começa a rever a sua posição. A tradução portuguesa do livro de Rodney Gallop (Cantares do Povo Português), cujo “critério científico” elogia, o conhecimento mais aprofundado da obra de Bartók e o incentivo de uma cantora polaca suscitam o interesse de Lopes-Graça pela música tradicional. Descobre que algumas canções tradicionais “não são nada coisas simples e ingénuas, mas belíssimas melodias, largamente elaboradas, de um equilíbrio plástico perfeito, de uma ampla ‘respiração’, e carregadas de potencial ora dramático, ora patético, ora simplesmente lírico, que faz delas pequenas maravilhas de expressão e musicalidade”. Em 1938, ainda em Paris, inicia a composição da sua primeira coleção de 24 canções populares portuguesas, para voz e piano.
A sua política da identidade – uma identidade alternativa, contra-hegemónica – funda-se, a partir daí, no que ele define como “critério étnico-estético”: a confluência entre práticas musicais não dissociadas das funções essenciais do quotidiano em que se reconhece uma comunidade rural (como aquelas que Giacometti captou em Povo que canta) e o interesse que elas podem ter para a constituição da linguagem artística do compositor. Tal é uma das dimensões de abordagem crítica – transgressiva – do material sonoro (aliás, socialmente pré-formado) em que se manifestam a sua visão da arte como “atividade de conhecimento” e o seu desígnio de “modernidade musical”.