“Mehte, tu és uma personagem do meu livro”

O primeiro romance de Tiago Salazar, A Escada de Istambul , começou com uma conversa entre dois estranhos numa escadaria bifurcada da cidade turca. O autor quis saber tudo sobre a história de uma família de quem só restam 43 degraus.

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Quando Mehte Göktug comprou a casa que transformou em restaurante, ela ainda não era um livro, como ele diz que podem ser todos os edifícios. Para que se possa tornar legível é preciso que o seu dono o queira. Mehte quis muito. Raspou quadrados nas paredes para descobrir o que a tinta branca ocultava. Nessa subcamada surgem agora pedaços visíveis de história escondida que iluminou com holofotes. Escrevinhados a lápis de carvão estão uma contagem decrescente de dias, dois desenhos de cabeças de guardas, uma mensagem de amor. Assim se tornou “legível” que o seu restaurante, que comprou em 1991, foi um dia uma prisão. “Este é o meu livro.”

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Quando Mehte Göktug comprou a casa que transformou em restaurante, ela ainda não era um livro, como ele diz que podem ser todos os edifícios. Para que se possa tornar legível é preciso que o seu dono o queira. Mehte quis muito. Raspou quadrados nas paredes para descobrir o que a tinta branca ocultava. Nessa subcamada surgem agora pedaços visíveis de história escondida que iluminou com holofotes. Escrevinhados a lápis de carvão estão uma contagem decrescente de dias, dois desenhos de cabeças de guardas, uma mensagem de amor. Assim se tornou “legível” que o seu restaurante, que comprou em 1991, foi um dia uma prisão. “Este é o meu livro.”

“É preciso lermos os edifícios, sermos curiosos”, diz-nos. Era isso que aquele rapaz (que anda pelos 40) – para ele, que passa dos 80 anos, era um rapaz – fazia ao descer e subir aquelas escadas bifurcadas. E subia e descia, e procurava na tabuleta sumida a meio da escadaria uma história que não estava lá escrita. Apenas se lia o nome que tinham dado ao sítio, chamava-se Escadas Camondo.

Quando Mehte, um arquitecto turco reformado, vê um estranho a olhar fixamente para um edifício em Istambul, a sua cidade, abeira-se dele e inicia uma conversa. Conversa muito com desconhecidos. “Não ganhamos nada em não conversar.”

O estranho que subia e descia as escadas nesse dia era o escritor e jornalista de viagens Tiago Salazar, que assim lança o seu nono livro, o primeiro que é um romance. Agora, de regresso a Istambul, veio oferecer a Mehte uma cópia do livro, A Escada de Istambul (Oficina do Livro/Leya). Mal o arquitecto abre a porta do seu restaurante, a Galata House, Tiago diz-lhe animado: “Mehte estás no meu livro, tu és uma personagem do meu livro.”

Foi de um encontro casual entre estes dois estranhos, um intrigado, o outro conversador, que nasceu o livro e a própria forma como o romance está estruturado. Surge como um diálogo entre alguém que quer muito saber a história de um sítio (“o romancista”) e um turco que brinca com a sua curiosidade, que o faz esperar a ele, e a nós leitores, pelo desenrolar da história da família Camondo. E que acaba mal, sentimo-nos autorizados a dizê-lo, porque a própria editora o revela na sinopse: os últimos membros da família Camondo desaparecerão definitivamente no campo de concentração nazi de Auschwitz.

Os primeiros Camondo terão vindo de Veneza, antes de Toledo em Espanha e até talvez de Lisboa. Da passagem da família pela Turquia resta esta escadaria. Os degraus que o famoso fotógrafo francês Cartier Bresson um dia fotografou a preto e branco (e que fazem a capa do livro) parecem mais sofisticados na imagem do que no local. As escadas captadas pelo nosso olhar a cores, que vai bem além das linhas de enquadramento da imagem, surgem decadentes e insignificantes. Mas, sim, concordamos com Tiago, destoam e, por isso, intrigam, se chegarmos a reparar nelas entre andaimes de obras e graffiti.

Como é que de uma família que ficou conhecida como os “Rothschild do Oriente” restaram estes 43 degraus mal cuidados? Na Turquia o nome Camondo é quase desconhecido, diz o autor. Tiago encarrega-se de, com o seu lado de repórter, corroborar o que diz, improvisando “uma vox populi” ali mesmo ao fundo das escadas: interpela um transeunte, em inglês: “Meu senhor, sabe quem foram os Camondo?” Confirma-se, não sabe.

E, no entanto, em Istambul, viriam a tornar-se banqueiros do sultão e grandes filantropos. Abraham-Solomon (1781-1873), o patriarca, foi o judeu mais rico do Império Otomano e fundou escolas, legando ao filho e aos netos a importância da caridade e do mecenato.

Tudo o que trouxeram à cidade desapareceu fisicamente. Com o seu romance, Tiago Salazar pô-los de novo a circular pelas ruas de uma cidade feita de muitos edifícios que já não existem. “Aqui seria a escola, aqui a sinagoga”, mostra Mehte num mapa de Istambul antiga que tem afixado à entrada do seu restaurante.

As escadas ficavam próximas da casa da família. No sítio onde ficava a residência há hoje um parque de estacionamento improvisado onde estão parqueados quatro carros e sobrevive uma figueira rodeada de lixo de tapetes e garrafas de plástico, onde circulam alguns dos gatos bem nutridos de Istambul. Só na placa temporária, que diz que ali vão começar obras, há indicação de que aquela rua teve um dia outro nome, era a rua Camondo.

Mehte diz que poucos atentam nos livros que Istambul tem esquecidos e lamenta que naquela cidade, quando se reconstrói algum edifício, seja para parecer que é novo. Mehte usa a comparação "de uma mulher de 75 anos que quer parecer ter 15". "O que é que acontece? Fica ridícula.” “Não se faz preservação, faz-se reconstrução.” Aponta para um edifício devoluto, que está para venda. “Era a casa do governador. Há lá muitas histórias, é um livro.” O edifício está fechado.

Se a conversa começou num dia frio junto às escadas, a história continuou a ser contada dentro de portas, mais ou menos assim, como no jantar de hoje: a mulher de Mehte, Nadir, cantava, como agora, tártaras canções tristes da Crimeia, acompanhando-se a si mesma ao piano. Era Inverno, a lareira estava acesa, e também havia uma garrafa de raki, a potente bebida nacional da Turquia com travo a anis. Presenciamos então um jantar, como o primeiro, há sete anos, entre a personagem do romancista e o seu narrador-personagem. Tudo começou como no livro: “Sirva-se de raki e sente-se.” Mehte contou-lhe tanto quanto sabia. Foi até certo ponto.

Para saber mais, Tiago teve de viajar até Paris e é para lá que leva os seus leitores na segunda parte do livro. Quando os Camondo começam a ser perseguidos pelo sultão, o mais novo da família decide que é tempo de mudarem de cidade, que os turcos eram ingratos em relação à sua generosidade, e sugere-se a mais sofisticada e europeia Paris.

Naquela cidade restou mais do que uma escada. Há um museu Camondo e duas estudiosas (Nora Seni e Sophie Le Tarnec) que se empenharam na reconstrução da biografia da família. Isaac Camondo foi amigo dos pintores impressionistas e doaria ao Museu do Louvre mais de cinquenta quadros de Monet, Manet e Degas. Era em Paris que viviam os últimos descendentes que acabarão então por morrer no Holocausto. Ficará sempre a pergunta: se tivessem permanecido em Istambul, teriam sobrevivido?

Uma das coisas que mais enredaram Tiago Salazar na história desta família foi a filantropia sem alarde. Boas acções praticadas de forma discreta. Querer escrever o romance “partiu da admiração”. De tal forma, que o rosto de Abraham-Solomon, o benemérito, o mais rico judeu do império otomano, é “a primeira coisa que [vê] quando [se levanta]”. Mantém uma fotografia dele mesmo em frente da sua cama “num psiché”, Tiago insiste que não se trata de uma cómoda, mas de um psiché.

Num degrau das Escadas Camondo, à direita, está hoje uma velha senhora de ar pobre, bengala pousada junto aos pés, a vender pacotinhos de lenços de papel. “Se fosse no tempo dos Camondo, aquela senhora tinha uma subvenção”, comenta Tiago. Abraham-Solomon inspira-o, mesmo depois de já ter acabado o romance. É o exemplo de um homem que fez o bem sem querer reconhecimento e que terminou perseguido. A sua família, o seu legado extinguiu-se. E Tiago quis fazer-lhes justiça. Quis que ficasse deles mais do que uma escada. Espera que um dia o seu livro seja traduzido para turco.

O PÚBLICO viajou a convite da Leya