O mundo encantado dos cavalos-marinhos tem os seus segredos
Apesar de nadarem de forma calma, os cavalos-marinhos têm tido uma evolução galopante no genoma. É o que revela agora a descodificação do seu genoma, bem como outros mistérios que tornam fascinantes estes animais.
Sem grandes pressas, os cavalos-marinhos nadam hirtos e em sentinela e apresentam cores variadas. Distinguem-se facilmente dos restantes peixes pela sua cauda enrolada maleável e um focinho que mais parece uma tromba. No fundo, é a sua fisionomia que constrói um mundo encantando no fundo do mar. Mas que deve muito a uma expressão mágica: os seus genes, que os tornam habitantes do mar peculiares.
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Sem grandes pressas, os cavalos-marinhos nadam hirtos e em sentinela e apresentam cores variadas. Distinguem-se facilmente dos restantes peixes pela sua cauda enrolada maleável e um focinho que mais parece uma tromba. No fundo, é a sua fisionomia que constrói um mundo encantando no fundo do mar. Mas que deve muito a uma expressão mágica: os seus genes, que os tornam habitantes do mar peculiares.
Agora, uma equipa de 34 cientistas, da Universidade de Konstanz (Alemanha), assim como de outras universidades em Singapura e na China, descodificou o genoma dos cavalos-marinhos e apresentou os resultados na revista Nature esta quinta-feira. O trabalho teve a coordenação de Byrappa Venkatesh, do Instituto Molecular e Celular, em Singapura.
A equipa desvendou três grandes segredos no genoma do cavalo-marinho. Por que é que não têm dentes. Por que não têm barbatana pélvica como outros peixes. E, por fim, responde-se a uma questão tão exclusiva nestes animais: por que é que são os machos a engravidar?
Das 38 espécies de cavalos-marinhos até agora identificadas e espalhadas pelos oceanos, usaram-se duas para descodificar o genoma: o cavalo-marinho-cauda-de-tigre (Hippocampus comes) e o cavalo-marinho-estriado (Hippocampus erectus).
O Hippocampus comes nada nos recifes de corais e pode ser encontrados na costa Sul da China, da Índia, Indonésia, Malásia, das Filipinas, em Singapura ou no Vietname. Os cientistas sequenciaram todo o genoma desta espécie, no qual identificaram 23.458 genes. Já o Hippocampus erectus pode ser encontrado no litoral do Brasil, nas Caraíbas ou na costa atlântica do Canadá e dos Estados Unidos. No Hippocampus erectus, a equipa só leu uma fracção do código genético (o ADN) que foi transcrita para dar origem ao fabrico de proteínas (o transcriptoma).
E que resultados obteve a equipa? A grande conclusão foi de que a perda e a duplicação de genes, assim como a perda de elementos reguladores do genoma, contribuíram para a rápida evolução do cavalo-marinho.
Comecemos pela formação da tromba do cavalo-marinho. Já alguma vez tinha pensado o porquê de o cavalo-marinho ter um focinho alongado e não ter dentição? Muitos genes que estão presentes em vários peixes e também nos seres humanos, e que contribuem para o desenvolvimento dos dentes, perderam-se no cavalo-marinho. “No caso do Hippocampus comes, a perda total da função de genes [da família] SCPP pode explicar a perda da dentição mineralizada”, lê-se no artigo científico.
“O cavalo-marinho não precisa mais dos dentes, uma vez que tem uma forma especial de se alimentar”, refere ainda um comunicado da Universidade de Konstanz. O facto de sugar a comida provocou uma tal pressão que levou ao desenvolvimento do focinho. A mesma perda de genes está também associada a uma maior capacidade do sentido da visão, em detrimento do olfacto, o que faz deles animais sempre em alerta.
A elegância do cavalo-marinho é desmistificada também neste estudo. É dos poucos peixes que não têm uma barbatana pélvica, o que se deve à perda de um gene específico (o tbx4). Para se desvendar que gene era esse, a equipa usou, em peixes-zebra, uma técnica recente de edição do genoma (CRISPR), fazendo “corta e cola”. Retirou nos peixes-zebra um gene importante e que já não existe no cavalo-marinho. Ao fazerem isto, os cientistas verificaram que os peixes-zebra perdia a sua barbatana pélvica, tal como aconteceu com o cavalo-marinho.
“O uso da CRISPR ajudou-nos a confirmar que a perda de tbx4 nos cavalos-marinhos é responsável pela perda da barbatana pélvica”, diz ao PÚBLICO Byrappa Venkatesh.
Ora o tbx4 não foi encontrado nem no Hippocampus comes nem no Hippocampus erectus. É um gene que está envolvido na formação dos membros dos mamíferos. Em termos evolutivos, está também na origem das pernas nos humanos. Tal como, aliás, conta Byrappa Venkatesh: “As mutações neste gene são conhecidas por causar doenças genéticas relacionadas com o desenvolvimento nos seres humanos.”
Outras das características distintivas dos cavalos-marinhos é que são os machos que ficam grávidos. Tudo começa com uma dança de corte, em que o macho e a fêmea andam à volta um do outro. No fim desta dança, ela coloca os ovos na bolsa dele e ele liberta os espermatozóides. Dias depois, os ovos eclodem e acontece o parto.
Pois é, também neste estudo se percebeu melhor por que é que são os machos que carregam os embriões. Os genes associados à eclosão dos embriões encontram-se bastante activos (ou expressos) na bolsa onde os machos desenvolvem os embriões.
Todos estes resultados foram uma surpresa para Byrappa Venkatesh: “A rápida evolução do genoma foi uma descoberta inesperada. Os cavalos-marinhos são animais lentos, que não nadam depressa, e que se restringem a áreas pequenas. Em contrapartida, o seu ADN tem evoluído muito rapidamente.”
As duas espécies de cavalos-marinhos usadas na sequenciação do genoma não existem nas águas portuguesas, mas o biólogo Miguel Correia, do Centro de Ciências do Mar da Universidade do Algarve, considera que este trabalho pode aplicar-se a todas as espécies de cavalos-marinhos. “Este estudo inovador e confirma o que já se suspeitava em relação à eclosão dos embriões na bolsa do macho e do seu desenvolvimento ao longo do tempo.”
Mas este pode ser apenas um primeiro passo no caminho de outras descobertas: “Quando o ovo passa da fêmea para o macho, pensa-se, mas ainda não se comprovou, que também são transferidos nutrientes.”
E em Portugal?
Só que este mundo encantado dos cavalos-marinhos também está ameaçado. Miguel Correia alerta que o Hippocampus comes e o Hippocampus erectus se encontram vulneráveis à extinção, segundo a Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza. “Até está mais o Hippocampus comes, devido ao stress associado ao seu uso na medicina asiática”, sublinha o biólogo. Depois, há também a caça tanto para o mercado da aquariofilia como para os acessórios fabricados com cavalos-marinhos. “Torna-se fácil apanhá-los, pois têm uma mobilidade muito reduzida.”
Também os cavalos-marinhos em território português estão cada vez mais ameaçados, mais especificamente duas espécies, refere Miguel Correia: o Hippocampus hippocampus e o Hippocampus guttulatus (ou cavalo-marinho-de focinho-comprido). As duas habitam no Algarve, na ria Formosa.
Relativamente ao cavalo-marinho-de-focinho-comprido, se por volta de 2001 ou 2002 existiam cerca de dois milhões de animais na ria Formosa, em 2008 a população tinha tido uma redução de 94%, contabilizando-se cerca de 120 mil cavalos-marinhos. Em 2013, verificou-se um ligeiro aumento, mas o cenário voltou a agravar-se em 2016. “Actualmente, existe uma apanha dirigida para o mercado asiático. É algo já estabelecido e vem no seguimento do que está a acontecer com os pepinos-do-mar. Os pescadores que apanham pepinos-do-mar também apanham cavalos-marinhos”, relata Miguel Correia.
Outro factor que facilita a pesca dos cavalos-marinhos é a sua sedentarização. O biólogo português conta que chegam a ser apanhados 400 de cada vez. “Podem estar a desaparecer em números alarmantes.”
Para combater este problema, Miguel Correia e outro colega, o biólogo Jorge Palma, começaram fazer experiências científicas em 2007, para criarem em cativeiro cavalos-marinhos-de-focinho-comprido. Nos primeiros dois anos, houve o problema da doença da bolha, que matava todos os cavalos-marinhos: “Ganhavam uma bolha de ar no sistema digestivo, que os impedia de se alimentarem correctamente, ficavam a flutuar à superfície e morriam”, dizia Miguel Correia ao PÚBLICO em 2013.
Por fim, os dois biólogos portugueses tiveram sucesso e, pela primeira vez, conseguiram reproduzir em cativeiro uma espécie de cavalos-marinhos de águas temperadas: em 2013, chegaram aos 700 animais.
Em 2016, começaram a reproduzir em cativeiro outra espécie, a Hippocampus hippocampus, e já há “resultados assinaláveis”, com a criação de três gerações. Os biólogos têm agora 600 cavalos-marinhos desta espécie.
Em breve, Miguel Correia espera que as duas espécies de cavalos-marinhos criadas em cativeiro cheguem ao mercado mundial. Sobretudo por três razões: diminuir a pesca, reintroduzir as espécies no seu habitat natural e criar condições para as estudar. “Queremos reproduzi-los de forma sustentável para o mercado”, salienta, acrescentando que já doaram animais para o Oceanário de Lisboa ou para o Zoomarine, em Albufeira.
Além da solução do cativeiro, sabermos como é o genoma dos cavalos-marinhos pode contribuir para evitar a sua extinção. “Um dos nossos objectivos a longo prazo”, diz-nos Byrappa Venkatesh, “é usar indicadores moleculares presentes no genoma para estudar a genética das populações de cavalos-marinhos e desenvolver estratégias de conservação, que têm estado em declínio devido à destruição do seu habitat”. E a ciência poderá assim ajudar a que o mundo maravilhoso dos cavalos-marinhos continue a ser uma realidade.