Bairro da Torre: "Vivemos na escuridão. Tenho que dar banho às crianças no quintal"

O Bairro da Torre, em Loures, vive às escuras há dois meses. Uma parte do bairro não tem água canalizada há quatro anos. E é o lixo que ladeia o terreno a paredes meias com o aeroporto de Lisboa. “Já não há bairros assim”, pensava uma das moradoras.

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Ricardina Cuthbert acha que a lei não chega até ao Bairro da Torre, em Loures. Se chegasse não estariam a viver em barracas de chapa, sem luz e alguns sem água, em terrenos “sem dono” ao lado do aeroporto de Lisboa. A moradora acha que se a lei chegasse ali não permitiria isto.

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Ricardina Cuthbert acha que a lei não chega até ao Bairro da Torre, em Loures. Se chegasse não estariam a viver em barracas de chapa, sem luz e alguns sem água, em terrenos “sem dono” ao lado do aeroporto de Lisboa. A moradora acha que se a lei chegasse ali não permitiria isto.

Na casa de Alda Mendes, mal se fecha a porta, a escuridão é total. “Vivemos na escuridão. Tento ficar com os meus filhos na rua até anoitecer, depois cada um pega na sua vela e vai dormir”, conta a moradora, viúva com cinco filhos. As velas e as lanternas pouco lhe valem para ver o que faz. “Com este frio, tenho que dar banho às crianças no quintal, porque dentro de casa não consigo ver.”

Sente-se “desligada do mundo”: não vê notícias, Alda nem sabe as horas porque não consegue carregar o telemóvel. “E se isto tudo só acabar quando os meus filhos reprovarem?” Quando chegam da escola já escureceu, por isso os mais pequenos não têm luz para fazer os trabalhos de casa. Outros, os dos mais velhos, ficam por fazer, porque “são pedidos na Internet".

A casa que construiu com os vizinhos — com chapa a toda a volta, uns tijolos ali e cimento onde der — está a cair sobre si mesma com a humidade. Já perdeu a conta ao número de vezes em que moveu a cama do filho para fugir à chuva. No seu quarto, aponta a lanterna: o tecto, em chapa, está cheio de gotas de água. Lá fora nem sequer chove e são três da tarde.

“As pessoas vêem-se sem chão. Tem-nos afectado bastante e, como é Inverno, há muita gente a ficar doente”, diz Ricardina. Com 42 anos e quatro filhos, sabe que tem “sorte”: a sua é das poucas casas com janelas no bairro. Só há três ou quatro assim, as outras são escuras, noite e dia. Natal? Nem lhes apetece.

Há quase dois meses que as cerca de 70 famílias do bairro – números da associação de moradores – vivem sem energia, aquecimento e iluminação. A EDP cortou a luz a 19 de Outubro. Fê-lo porque os moradores deixaram de pagar, não se conseguiram entender para reunir o valor da factura colectiva.

Entretanto, os moradores, a Câmara de Loures, a EDP e outras entidades envolvidas (entre as quais o Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana) tentam chegar a acordo para contratos individuais com a EDP ou encontrar soluções alternativas de fornecimento de energia.

Sabe-se que o terreno é público. Mas Ricardina diz que não se sabe ao certo de quem. Talvez na reunião que está marcada para sexta-feira com a associação de moradores, câmara, EDP, a ANA – Aeroportos de Portugal e Autoridade Nacional da Aviação Civil se "arranje uma solução para o bairro."

À falta de luz, soma-se a falta de aquecimento. As paredes da casa de Alda Pires estão a encolher de humidade. Dorme com quatro cobertores porque o ar frio dentro de casa “já é pior que lá fora.” É por isso que Santos Oliveira, de 67 anos, o filho e o sobrinho dormem no carro durante a tarde, enquanto está quente.

Como os electrodomésticos não funcionam, as contas no supermercado duplicaram. “Eu ia ao mercado e com vinte euros trazia as minhas coisas para a semana. Agora tenho que ir todos os dias e gasto cinco ou oito euros”, o que faz com que as contas de Guilhermina Soares se tornem mais complicadas com os 270 euros da pensão de viuvez.

Às portas do bairro, a comunidade cigana vive sem água canalizada há quatro anos. Maria Cardoso rege-se com a água da chuva, que cai nos barris azuis que têm à entrada. É a água que usa para tomar banho e limpar. Para cozinhar e beber, a água vem em bidões mais pequenos, que lhe dão “sabor a borracha”.

Não conseguiram criar uma associação para fazer o contrato da água, por isso, ainda que a ligação esteja lá, só tiveram água no primeiro dia. No dia seguinte, obras no local romperam o tubo que ficou durante seis meses a deitar água para o terreno. “Toda a gente tinha agriões naquela altura”, ri-se Maria, de 43 anos.

Para além da falta de luz e água, os moradores “vivem com lixo ao lado”, como descreveu a redactora especial da Organização das Nações Unidas (ONU), Leilani Farha. Mesmo depois de terem sido retiradas quatro toneladas de lixo há cerca de um mês, um avolumado monte de entulho à porta de Guilhermina Soares convida “ainda mais ratos e agora as cobras” a entrarem-lhe pela casa dentro. O lixo, “que está aqui há anos”, cresce e os cães espalham-no a cada dia.

“Já não há bairros assim”, pensava Guilhermina.