Testes, trabalhos, tribulações
O mundo não pode silenciar algumas exigências simples perante o que se está a passar em Alepo.
Na crónica de segunda-feira mencionei uma universidade russa que tinha sido há uns anos fechada temporariamente pelos bombeiros, num aparente ato de pressão pelas autoridades do regime de Putin. Não disse o seu nome, não fosse o diabo tecê-las, mas já não teria sido preciso: a Universidade Europeia de São Petersburgo viu ser-lhe retirado o seu alvará e está à beira de fechar definitivamente pelo crime de ser independente.
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Na crónica de segunda-feira mencionei uma universidade russa que tinha sido há uns anos fechada temporariamente pelos bombeiros, num aparente ato de pressão pelas autoridades do regime de Putin. Não disse o seu nome, não fosse o diabo tecê-las, mas já não teria sido preciso: a Universidade Europeia de São Petersburgo viu ser-lhe retirado o seu alvará e está à beira de fechar definitivamente pelo crime de ser independente.
Quando me perguntam porque volto ao tema da Rússia de Putin, é por isto. Não pela Rússia e pelos russos, mas por Putin. Para impedir a normalização da sua arbitrariedade no meio das falsas equivalência morais, do “ai eles são todos iguais” e do “há hipocrisia em todo o lado”. Se forem todos iguais e houver hipocrisia em todo o lado, Putin e a normalização de Putin terão dado uma grande ajuda.
A história voltou com requintes de vingança, como disse António Guterres ao fazer o juramento da Carta das Nações Unidas para ser o próximo Secretário-Geral da ONU. O discurso de Guterres foi claro, foi preciso — nos dois sentidos do termos — e tudo menos cauteloso. Foi bom ver que o terramoto político que vivemos com Trump nos EUA não moderou Guterres entre o dia da sua eleição e o da sua tomada de posse. É bom que tenhamos também consciência de que isso pode fazer dele um Secretário-Geral de um mandato só. Não creio que ele o procure, mas também não me parece querer evitá-lo se o custo for demasiado alto. Precisamos dessa atitude também.
Nestes novos tempos da história não podemos esperar facilidades. Só podemos esperar testes, trabalhos e tribulações, como nas histórias bíblicas e nas cantigas de blues que eram a música sofrida dos escravos.
Os testes, trabalhos e tribulações de outras partes do mundo são incomparavelmente mais difíceis do que os nossos. Há quem escolha ignorá-los. Há quem escolha nem saber deles. Um candidato à presidência dos EUA, quando perguntado sobre o cerco e agora tomada de Alepo, na Síria, respondeu com sincera ingenuidade: “que coisa é Alepo?” — ele não sabia mesmo do que se estava a tratar.
O mundo não pode dar-se ao mesmo luxo. O mundo não pode silenciar algumas exigências simples perante o que se está a passar em Alepo. Pelo menos duas exigências simples: a organização de ajuda humanitária aos habitantes da cidade e a permissão de acesso a observadores independentes.
É já uma triste consequência do estado do mundo que até estas simples exigências sejam confundidas sob um manto de confusão e desconversa sobre quem tem mais culpas na Guerra da Síria e o que faz ou fez cada uma das partes em todas as guerras no médio-oriente desde o início do século. Tal como a Europa deve receber refugiados da Síria, por obrigações humanitárias, sem ter a ilusão de que isso resolva as raízes da guerra, também à Rússia deve ser exigido o respeito pelo direito internacional humanitário, ainda que nos seus mínimos, independentemente da visão global que tenhamos sobre o conflito.
E não, o facto de os americanos terem invadido o Iraque não faz diminuir o que deve ser a nossa exigência moral, política ou legal da Rússia. Pelo contrário; esse era o argumento — o de que os outros eram iguais ou piores — de quem defendia a Guerra do Iraque. Quem esteve na rua contra a Guerra do Iraque tem exatamente a mesma razão que tinha para protestar contra as violações do direito internacional na Síria.
Se isso era popular então e é impopular agora pouco importa. O que importa é que se está a passar no nosso tempo aquilo que sabemos ter acontecido no passado e que costumamos arquivar na memória coletiva sob as perguntas: “como é que deixaram acontecer? por que não houve mais indignação?”.
O teste que há a passar não é, porém, um teste de história mas um teste de moral. Depois dele, só virão mais trabalhos e tribulações. Se é assim o nosso tempo, perseveremos.