“Acolhimento”, “ajuda” e “justiça” pedem à Europa Nadia e Lamya
O Daesh ainda mantém 3500 mulheres e meninas yazidis escravas sexuais. “Todos os dias morrem mil vezes”, disse uma das jovens que recebeu o Prémio Sakharov 2016 no mesmo dia em que reencontrou o irmão.
Nadia Murad e Lamiya Aji Bashar desdobraram-se em agradecimentos mas fizeram ainda mais pedidos à União Europeia. Membros da comunidade yazidi, um dos grupos religiosos mais antigos do mundo, concentrado no Iraque, querem ajuda para que o seu povo não desapareça.
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Nadia Murad e Lamiya Aji Bashar desdobraram-se em agradecimentos mas fizeram ainda mais pedidos à União Europeia. Membros da comunidade yazidi, um dos grupos religiosos mais antigos do mundo, concentrado no Iraque, querem ajuda para que o seu povo não desapareça.
Capturadas pelo Daesh em 2014, viveram como escravas sexuais até conseguirem fugir. Esta terça-feira, receberam em Estrasburgo o Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, atribuído pelo Parlamento Europeu desde 1988.
“Tem de haver um sistema de responsabilização, os terroristas têm de ser levados à justiça”, disse Lamiya, 18 anos, apenas 15 quando foi capturada. “Há três anos que isto dura e ainda há mais de 3500 mulheres e meninas em cativeiro”, repetiram ambas.
A única solução para os yazidis, uma das minorias mais perseguidas do Iraque, é a “criação de uma zona de protecção em coordenação com o Governo iraquiano e com o governo autónomo do Curdistão”, defendeu Nadia, a jovem de 23 anos que tem feito campanha pelo reconhecimento de um genocídio contra os yazidis. “Se isso não for possível peço-vos que nos abram a porta e nos recebam”, disse quase no fim do seu discurso na cerimónia, arrancando muitos e ruidosos aplausos no plenário do PE.
Lamiya repetiu a importância da protecção do seu povo no seu país. “Desculpem dizer-vos, mas se não nos ajudarem no Iraque, estas pessoas vão tornar-se refugiadas e vão chegar aqui à Europa”, afirmou.
Os yazidis são etnicamente curdos e vivem na sua maioria no Iraque – são menos de 800 mil. Em Agosto de 2014, quando o grupo jihadista Daesh avançou da Síria para o Iraque, tomaram as minorias como alvo, em particular os yazidis e os cristãos. Kocho, a aldeia de Nadia e Lamiya, ficou sem habitantes. Os homens foram mortos, as mulheres mortas ou escravizadas, meninas de todas as idades tiveram o mesmo destino.
No meio da tragédia que voltaram a reviver por entre lágrimas, Nadia e Lamiya tiveram a sorte de sobreviver, fugir e chegar à Alemanha, através de um protocolo assinado entre o Curdistão e as autoridades da região alemã Baden-Württemberg que permitiu a 1100 sobreviventes recomeçar a vida na Europa. Agradeceram à Alemanha e pediram a mesma sorte para as outras vítimas que escaparam, muitas estão em campos no Curdistão, outras na Grécia.
Meninas de quatro anos
“Costumava torturar-me a mim e a todas as yazidis que tinha com ele, violava até meninas com quatro e cinco anos”, recordou Lamiya, falando do último homem que a comprou, um médico iraquiano chamado Azlam. Quando fugiu, fê-lo com Katerine, uma amiga, e uma menina pequena, de nove anos. “Conseguimos fugir mas antes de ficarmos em segurança a Katerine pisou por acidente uma mina e a última coisa que ouvi foram os seus gritos a morrer. Sabia que nunca mais ia ser capaz de ver, todo o meu corpo ardia e pensei que nunca iria abrir os meus olhos outra vez.”
Lamiya não conseguiu conter as lágrimas quando reviveu estes momentos, de pé, ao microfone, na sala do plenário. Uns metros atrás, Nadia sentiu-se mal e teve de se encostar. Mas ficou ali, até ao fim da intervenção de Lamiya e a seguir falou ela. As duas surgiram na cerimónia de roupas tradicionais yazidis, Nadia com um vestido brilhante em tons de castanho e um lenço lilás na cabeça; Lamiya de vestido branco bordado e faixa laranja à cintura.
Falaram em seu nome, em nome dos yazidis, “e de todos os iraquianos vítimas do Daesh e de todos as vítimas do terrorismo em todo o mundo”, disse Nadia, apelando ao diálogo “com os líderes muçulmanos genuínos, no Iraque e nos outro sítios” e avisando para “os muitos perigos do terrorismo e da reacção ao terrorismo”. Falaram em nome das mulheres e meninas que permanecem escravas. “Todos os dias morrem mil vezes outra vez”, disse Lamiya.
“Hoje tivemos esta oportunidade de ver o que este debate de refugiados significa na realidade. As outras mulheres yazidis que sofreram o mesmo merecem a mesma protecção, isso não oferece discussão, pelo menos nesta casa, mas ainda estarmos muito longe dessa realidade”, disse o presidente do PE, Martin Schulz.
Yazidis em Portugal
Lamiya esteve em Junho em Lisboa com a eurodeputada socialista Ana Gomes, que tem tentado acelerar a ida para Portugal de parte da comunidade yazidi actualmente na Grécia à espera de ser acolhida num estado-membro. A ministra da Administração Interna, Constança Urbano de Sousa, reafirmou na sexta-feira que há “97 processos a ser analisados” de yazidis que manifestaram interesse em ir para Portugal.
Na Grécia, há ainda mais de 4000 yazidis, incluindo muitas vítimas do Daesh, que já poderiam ter sido recebidos em países da UE. São uma pequena parte dos 160 mil refugiados identificados há dois anos para serem redistribuídos pelos estados-membros. Até agora, soube-se a semana passada, só 7% destes, pouco mais de 8000 pessoas, puderam recomeçar a sua vida num dos países europeus.
“Os yazidis perderam quase tudo. Mas peço-vos que me prometam que nunca mais vão deixar estas coisas acontecerem, que nos vão ouvir e garantir que os culpados destes crimes vão ser perseguidos”, pediu Lamiya. “Eu era uma miúda numa família grande. Aprendi da minha mãe o sentido da beleza, da compaixão. Em casa, rezávamos por todas as pessoas do mundo antes de rezarmos por nós mesmos”, contou Lamiya. “O Daesh queria tirar-nos a nossa honra mas hoje vocês deram-nos a nossa honra e a nossa dignidade de volta.”
A mãe de Nadia foi morta com as outras mulheres mais velhas de Kocho. Ambas perderam o pai, Lamiya não sabe da mãe. Em Estrasburgo, reencontrou o irmão mais novo, um menino ruivo que um tio conseguiu comprar de volta ao Daesh e que esteve até agora no Iraque, 18 meses passados num campo. “Este menino perdeu os pais e perdeu-se de toda a família durante três anos. Hoje, graças a este prémio, reencontrou a irmã”, disse Schulz. O pequeno posou para as fotos ao lado da irmã e sorriu. Agora, vão viver juntos na Alemanha.