Vai ser restaurado o túmulo de D. Dinis, o rei que quis estar sozinho
Por que razão decidiu D. Dinis ficar longe da mulher depois de morto? O seu sarcófago está no Mosteiro de Odivelas e foi seriamente desvirtuado pelo terramoto de 1755 e por restauros posteriores. Agora uma equipa tenta renovar-lhe a dignidade.
Para chegar ao trono teve de enfrentar um Afonso – o irmão – e para se manter no trono foi obrigado a lutar contra outro – o filho. Entre o primeiro e aquele que viria a ser o seu sucessor como Afonso IV, D. Dinis teve uma vida cheia e uma palavra a dizer sobre a forma como seria recordado depois de morrer. Escolheu o lugar em que haveria de ser sepultado e aprovou o túmulo que para ele mandou construir, o primeiro de um monarca português com uma jacente (escultura deitada sobre a tampa do sarcófago, neste caso representando o rei), o primeiro de um monarca português a receber autorização do próprio Papa para ser colocado dentro de uma igreja e não num espaço anexo, como era hábito.
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Para chegar ao trono teve de enfrentar um Afonso – o irmão – e para se manter no trono foi obrigado a lutar contra outro – o filho. Entre o primeiro e aquele que viria a ser o seu sucessor como Afonso IV, D. Dinis teve uma vida cheia e uma palavra a dizer sobre a forma como seria recordado depois de morrer. Escolheu o lugar em que haveria de ser sepultado e aprovou o túmulo que para ele mandou construir, o primeiro de um monarca português com uma jacente (escultura deitada sobre a tampa do sarcófago, neste caso representando o rei), o primeiro de um monarca português a receber autorização do próprio Papa para ser colocado dentro de uma igreja e não num espaço anexo, como era hábito.
“D. Dinis não é um rei qualquer, é um dos mais importantes da história de Portugal e uma personalidade fascinante por variadíssimos motivos com um percurso cheio de revoluções, de primeiras vezes”, diz Giulia Rossi Vairo, investigadora da Universidade Nova de Lisboa e autora de uma tese que olha para o monarca e para a sua mulher, que ficaria conhecida como rainha Santa Isabel, a partir da arte tumulária que lhes está associada (D. Dinis de Portugal e Isabel de Aragão in vita e in morte. Criação e transmissão da memória no contexto histórico e artístico europeu).
As revoluções de que fala esta historiadora de arte italiana, que começou por se apaixonar pela “força e o carácter” da filha do rei de Aragão, passam pela administração do território, pela agricultura e pela construção naval, pela educação e pela cultura, e têm no túmulo que outrora ocupou um lugar de destaque a meio da igreja do Mosteiro de Odivelas, entre a capela-mor e o coro das monjas que ali viviam em regime de clausura, outro reflexo de inovação. “O rei quis determinar que imagem sua ficaria para a eternidade. E a rainha também. Isso é muito moderno para a época. São os primeiros reis portugueses a fazê-lo”, acrescenta Rossi Vairo, lembrando que é D. Dinis (1261-1325) quem manda fundar este mosteiro cisterciense que obedecia à casa-mãe de Alcobaça, onde até aí se sepultavam os reis e sua descendência, e que é também ele que, por um breve período, o transforma num panteão régio.
É precisamente o seu túmulo, seriamente danificado pelo terramoto de 1755 (a abóbada da igreja abateu-se sobre ele), e sujeito a inúmeras intervenções, sendo as mais abrangentes dos meados do século XIX – foi a rainha D. Estefânia que a ordenou – e dos anos 1960, que a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) e a Câmara Municipal de Odivelas querem ver restaurado. Depois de anos de quase esquecimento, dirão muitos, as duas entidades juntaram-se para dar renovada dignidade ao túmulo do sexto rei de Portugal, um homem que, durante quase meio século de governo, consolidou as fronteiras, revolucionou a agricultura (daí o cognome O Lavrador), revitalizou a exploração mineira, impulsionou o comércio, fundou a primeira universidade, travou uma guerra civil (1319-1324) e ainda teve tempo para escrever poesia (é autor de dezenas de cantigas de amor e de amigo, referência das letras trovadorescas em Portugal e fora dele).
O seu sarcófago monumental ocupa hoje uma capela lateral do mosteiro que é monumento nacional desde 1910 e está entregue ao Ministério da Defesa (segundo a DGPC, a autarquia espera há já algum tempo resposta a um pedido para que o edifício passe para a sua guarda).
Nesta primeira fase, que deverá terminar no final de Dezembro, os trabalhos vão concentrar-se na limpeza do sarcófago, explica Maria Antónia Tinturé, técnica de conservação e restauro da DGPC. “Estava muito sujo. Sem retirar as camadas de sujidade é impossível perceber a própria estrutura do túmulo, distinguir o que é original do que é dos restauros dos séculos XIX e XX”, diz, apontando para a argamassa que cola o tampo à base, que não estava lá nas fotografias dos anos 1960, quando se fez a última grande intervenção.
Muito provavelmente são desta época, diz Tinturé, os acrescentos em cimento e ferro e a fina camada acinzentada que cobria todo o conjunto. “É uma espécie de véu que foi posto para dar uma certa unidade ao conjunto.” Aqui e ali ainda são visíveis vestígios da policromia, que pode ou não ser do original. O Instituto Politécnico de Tomar vai agora estudar amostras da pedra e da tinta usada para decorar o sarcófago para que se possa determinar a sua idade.
“Nesta fase, o que estamos a fazer é o diagnóstico, um mapeamento do que é original e dos restauros.” O que não significa que haja intenção de retirar o que o tempo lhe foi acrescentando, por mais despropositado que hoje pareça aos técnicos de conservação, que se regem por uma cartilha de intervenção que evita as reconstituições e deixa bem visíveis quaisquer alterações ao original: “Esta cabeça, por exemplo, é descomunal”, diz Maria Antónia Amaral, arqueóloga da DGPC, “mas não faria qualquer sentido mexer-lhe, como não faria sentido retirar as reconstituições feitas há mais de 100 anos”. João Seabra Gomes, outro dos técnicos da DGPC, é da mesma opinião: “Hoje sabemos que a intervenção deve ser mínima, que devemos manter lacunas e omissões, que não deve haver qualquer especulação. No passado não era assim, mas os restauros do passado também fazem parte da história e, por isso, devem ficar.” A única excepção a essa permanência, precisa Maria Antónia Tinturé, é quando ameaçam a integridade do original, o que aqui não acontece.
Um rei de boa morte
Ninguém sabe como o túmulo era antes do terramoto e, se alguns defendem que lhe falta nas mãos a espada que era comum nas jacentes dos reis europeus da Idade Média, outros há que levantam a hipótese de ela nunca ter existido. Neste caso, como em tantos outros, são mais as dúvidas do que as certezas. Por que razão é a cabeça do rei tão desproporcional face ao resto do corpo? E porque segura ele um pedaço do manto, num gesto tipicamente feminino? Seria o túmulo em calcário colorido desde o começo ou veio a ser pintado no grande restauro do século XIX?
Certo é que o rei viu o sarcófago concluído e o aprovou – seja qual for a imagem que dele dava, D. Dinis achou-a adequada. “Os reis da Idade Média dão muita atenção a estas questões da eternidade, da chamada boa morte. Querem preparar-se em vida, ter a certeza de que têm um testamento, de que são ouvidos em confissão”, explica Maria Antónia Amaral, remetendo para os estudos sobre o túmulo de D. Dinis conduzidos pela historiadora de arte Carla Varela Fernandes (O bom rei sabe bem morrer. Reflexões sobre o túmulo de D. Dinis).
No primeiro dos testamentos que deixou, o de 1318, D. Dinis determina que o Mosteiro de Odivelas, cuja construção começa em 1295, deverá receber o seu túmulo e o da mulher, D. Isabel. Mas, num segundo documento, quatro anos mais tarde, muda de ideias. Para essa deriva de opinião terá contribuído a guerra civil que opôs D. Dinis ao filho Afonso, que temia ver o pai nomear como sucessor o seu meio-irmão, Afonso Sanches, filho bastardo do monarca e certamente o seu predilecto (ainda para mais trovador como o pai), e o facto de a rainha estar ainda longe de ser a figura que viria a promover a reconciliação entre o rei e o herdeiro legítimo.
“O casal zanga-se, a guerra separa-os, e nem mesmo a ligação emocional e até financeira que têm a Odivelas resolve as coisas”, diz a historiadora de arte Giulia Rossi Vairo, lembrando que a rainha está sepultada no Convento de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra. “Até o Papa lhes pede que se reconciliem porque a desunião do casal era a desunião da coroa, o que podia ser perigoso. E pede também que Isabel reconcilie pai e filho, o que acaba por fazer.”
Rossi Vairo não sabe se foi o rei se a rainha quem determinou que queria estar sozinho por toda a eternidade, embora cronologicamente essa decisão pareça ter cabido ao rei, que morreu primeiro. “Não sabemos, mas não acredito que a rainha não tivesse conhecimento da decisão do rei. E é Isabel de Aragão que depois escolhe Coimbra e também aprova o túmulo que para ela é construído. Estamos a falar de uma mulher de personalidade forte, com dinheiro e influência em Portugal e não só. Ela também não é uma rainha qualquer.”
A segunda fase dos trabalhos de conservação e restauro só começará depois de reunida e tratada toda a informação do levantamento que está agora em curso. A intervenção deverá depois estender-se ao outro túmulo do mosteiro, que pertencerá a um dos netos de D. Dinis (durante muito tempo acreditou-se que nele jazia uma das suas duas filhas bastardas – ao todo o rei teve sete filhos ilegítimos –, mas hoje as teses andam entre os netos João e Dinis, infantes que terão morrido com cerca de um ano).
Não está afastada a possibilidade de os restos mortais do monarca virem a ser estudados durante este processo, embora não haja ainda qualquer projecto nesse sentido.