Este é o apocalipse dos “sem direito” a casa
Andar pelo 6 de Maio é pisar despojos de vidas. Ainda lá vivem pelo menos 100 famílias. Ao fim de 23 anos, e de 2,4 mil milhões de euros, o Programa Especial de Realojamento deixou milhares “sem direito” a casa. Dois peritos em direitos humanos da ONU estão em Portugal a avaliar a habitação
No dia em que lhe demoliram a casa, eram umas 9h. Ondina Tavares desceu do seu quarto, apagou o lume, abriu a porta e deu de caras com a polícia e com alguém que julga ser funcionário da Câmara Municipal da Amadora.
— A senhora vai ser desalojada hoje, tem de sair. Vá arrumar as suas coisas, disseram-lhe.
Estava à espera de um papel na porta da sua casa no Bairro 6 de Maio, Amadora, a notificar. Mas nada. De roupão, perguntou:
— Não põem papel na porta, não avisam, não telefonam? Mas têm o meu número!
Era dia 3 de Outubro. Estava sozinha. Subiu ao segundo andar para ligar à filha.
— Fiquei a tremer, não conseguia fazer nada. Nada, nada, desabafa hoje, voz trémula, nervosa na conjugação dos verbos.
Ondina tem problemas de tiróide e de tensão, tem um pacemaker.
— Maria Suzete, vem rápido porque eu estou desorientada, pediu à filha. A câmara mandou tirar as coisas, a casa vem para baixo.
Ela continuava desorientada. Deixou os homens que entraram a tratar das suas coisas. Sentia-se incapaz.
— Não sabia dar conta de nada. Eles deviam ter avisado… eu tirava as minhas coisas, queixa-se hoje.
Foram eles que puseram as coisas em sacos de lixo pretos, ainda hoje amontoados em casa do irmão, para onde Ondina, a filha e os netos foram temporariamente viver. Os móveis seriam levados para um armazém da câmara, com remédios e papéis de consultas lá dentro.
Ondina dirige-se agora ao lugar a que chamou casa durante 18 anos. Uma carcaça de cimento pintada de verde-claro com azulejos brancos — e que era a casa do vizinho — ainda se mantém de pé. Em baixo havia uma sala com um corredor, a cozinha e a casa de banho; em cima eram os dois quartos. Pagava uma renda de 250 euros. Tinha espaço suficiente para cinco pessoas. Hoje atravessa sempre a estrada para não passar mesmo ao lado da casa que foi sua.
Não trabalha e teve de “mandar buscar” a filha Suzete a Cabo Verde para tratar dela. Na câmara, quando foi tentar perceber a sua situação, disseram-lhe: “Não tem direito a casa.”
Sugeriram que ela e a família fossem viver com o irmão, a pessoa que oficialmente ficou com direito a ser realojado por via do Programa Especial de Realojamento (PER) – a casa onde está provisoriamente era da mãe. O irmão “ainda não decidiu se vai aceitar o dinheiro”, diz Ondina.
Criado em 1993 para realojar “pessoas residentes em barracas” nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, dando apoio financeiro para construção ou aquisição de habitações, o PER tem vindo a ser executado de maneira diferente pelas autarquias. A Câmara Municipal da Amadora (CMA), que diz já ter investido mais de 46 milhões de euros nos realojamentos, tem sido criticada pelos despejos no Estrela de África, Santa Filomena, 6 de Maio. Muitas queixas são sobretudo de pessoas que estão fora do PER, ou seja, que não foram recenseadas pelo INH – Instituto Nacional de Habitação (hoje IHRU – Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana).
O 6 de Maio tem sido demolido ao longo do tempo, mas mais sistematicamente desde 2015. Ainda lá estão 77 agregados PER (dos 424 iniciais) à espera de realojamento; quanto às famílias “sem direito” ao PER, a CMA não sabe quantificar. A presidente Carla Tavares, ex-vereadora da Habitação, diz que “os números estão sempre a mudar”.
“Desculpe o cheiro”
Enquanto Ondina e a família estão alojados temporariamente em casa do irmão, ele mudou-se para a da namorada.
— Eu tenho o meu agregado familiar, diz Ondina. Achava que podia [ter uma casa com] a minha filha, os meus netos que estão no meu coração. Não estou a conseguir dormir: eu dentro e a minha filha e neto na rua… Fui internada quatro vezes, quem é que me ajuda?
É reformada por invalidez, e no total recebe cerca de 400 euros, que tem de dar para se sustentar, comprar medicamentos, ajudar a família em Cabo Verde.
— O dinheiro não chega, sinceramente.
Na casa onde agora está, pouco espaço existe para se circular. Chega-se atravessando becos do bairro. Pelo meio circulam jovens, alguns ficam à esquina parados. Suzete pede desculpa pelo cheiro abafado e a esgoto no ar. Mostra o quarto onde o filho dorme, colado à cozinha. Teme pela saúde dele. Ela dorme com outro filho num divã que se abre à noite e fecha de manhã na pequena sala.
A casa não tem janelas, e as paredes, apesar de pintadas, mostram o sinal da humidade. Em todos os cantos há sacos de plástico empilhados. Uns bidões azuis têm roupa dentro, às vezes também comida. Ondina dorme num quarto com um desumidificador, que fica ligado durante a noite e retém litros de água. A janelinha dá para um beco sem luz.
Maria Suzete vem da cozinha, onde as paredes têm bolor e os canos escorrem água.
— Isto não são condições para a minha mãe viver, ela é doente.
Nas paredes da sala há várias estátuas de Nossa Senhora. Ondina costuma ir a Fátima pedir ajuda.
— O bairro vai acabar.
Não se importa de sair. Só quer uma casa onde viver. Não interessa onde.
Despojos a céu aberto
A casa de Ondina tornou-se em mais um dos escombros que por estes dias dominam o 6 de Maio. Desde que as demolições começaram em força no início de 2015 que o bairro se tem tornado um cenário apocalíptico. Tijolos, entulho, roupas, lixo, móveis abandonados, sofás, sapatos, garrafas, toalhas, tudo se amontoa naquilo que já foram ruelas de um bairro habitado maioritariamente por famílias de origem imigrante. Algumas paredes ainda têm azulejos. Outras têm graffiti. Pelo soalho agora partido adivinha-se que alguém investiu em melhorar o chão que pisava.
A Irmã Deolinda Rodrigues vive no bairro há anos. Trabalha desde 1986 com população imigrante que foi chegando à Amadora e criando o 6 de Maio ou os já desaparecidos Fontainhas e Estrela de África. É directora do Centro Social 6 de Maio, gerido pelas Irmãs Missionárias Dominicanas do Rosário. Vive também o despejo das famílias. “Actualmente, o bairro não tem nada que ver com o que era. Quase metade está demolido”, lembra no seu escritório no Centro Social. “As crianças daquele tempo são agora adultas com filhos.”
Preocupa-a quem veio depois do recenseamento de 1993, e não tem direito ao PER, ou quem estava no PER mas está indocumentado e é excluído. “Muita gente vem de países em que é difícil ter documentos, com processos demorados. O SEF está a responder lentamente, dá entrevista depois de seis meses da marcação… E muita gente podia ter a nacionalidade portuguesa uma vez que nasceu cá”, desabafa.
Numa reunião no Centro Social para apoiar no processo de despejo e realojamento, com técnicos da autarquia e de organizações de voluntariado, foram poucas as presenças. Duas mulheres estavam hesitantes entre aceitar o apoio financeiro/ indemnização ou o realojamento. As questões eram muitas.
A CMA tem três programas para quem está no PER: o PAAR, Programa de Apoio ao Auto-Realojamento, que financia 20% do valor da casa que teria de ser construída se a família fosse realojada (o dinheiro é usado como se quiser), o Retorno, que financia o mesmo valor para a pessoa regressar ao país de origem (com pouca adesão); e o PAAR Mais, que financia 40% do valor da casa que teria de ser construída mas o dinheiro tem de ser usado na compra de um imóvel. Para os agregados PER do 6 de Maio, foi criado um programa em que financia 60% do valor do fogo que teria de ser construído (o que representa até agora 1,5 milhões de investimento). Os valores máximos oscilam entre 78.296 euros para um T4 e 43.546 euros para um T0.
No terreno, as soluções que apresentam a quem está fora do PER são ir para um centro de acolhimento temporário ou um mês de renda e outro de caução mediante apresentação de contrato de arrendamento. A autarquia tem argumentado que “ninguém fica na rua” e todos são acompanhados por técnicos durante meses.
“O bairro está muito degradado, penso que grande parte das famílias se pudesse ia-se embora. Já não apetece viver aqui”, diz a irmã Deolinda, preocupada com o tráfico e consumo de droga. Deolinda ainda se lembra da altura em que a câmara colocava um papel na porta a avisar que a casa ia ser demolida. Hoje “parece” que já não o faz. Mas “ninguém pode dizer que não sabia”, há anos que se anunciou que o bairro vai ser demolido, justifica. “Em alguns casos as pessoas são descuidadas.”
Há também situações em que “a gente não sabe o que dizer, nem que pensar”, desabafa, partilhando o sentimento de desespero de quem, se pudesse, dava casas às pessoas.
Muita gente veio alugar casas nestes bairros por várias razões, lembra Rita Silva, da Habita, uma associação que tem feito pressão contra os despejos sem alternativa. Mas isso é apenas “manifestação do problema brutal que existe no acesso ao mercado privado da população negra e pobre. Os senhorios não gostam e pedem fiador, e as rendas são caras. As pessoas viram-se para estes bairros onde as rendas são mais baratas e os pré-requisitos menores”.
“E agora: sou um cão?”
À medida que as casas caem, cai também o cuidado com o ambiente à volta. Andar pelo 6 de Maio hoje é pisar despojos de vidas. Ainda assim, a vida continua. Um grupo de homens reúne-se à entrada do bairro. Numa mesinha, servem chá à marroquina, mudando a bebida de um copo para outro até formar uma certa espuma. Às vezes também aparece uma senhora a cozinhar numa fogueira panelas de couratos, por exemplo. Adriano Furtado, mais conhecido como “Florzinho”, aproxima-se. Usa um blazer cinzento e uma boina. É falador.
— Vejo-os a chegar aqui com polícia de intervenção rápida, partir as portas e as casas. Tratam a raça negra pior que um animal. Quem é que reage com a força policial que eles põem aqui no bairro?
“Florzinho” vive no primeiro andar de uma das casas que estão à entrada. A estrutura de tijolos à vista tem um pequeno balcão, onde armazena um grelhador e se empilham um micro-ondas e restos de cadeiras. Lá dentro, o chão em placas de madeira dá mais luz à sala, com um sofá, uma mesa e cadeiras. Aos 66 anos, pensionista, recebe 320 euros por mês. Gravou com músicos como Katuta Branca. Até aparece na Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX, com direito a fotografia, tocando fero.
Está em Portugal desde 1971, aqui cumpriu o serviço militar. Foi mobilizado para Angola, voltou em Janeiro de 1974. Entregou a farda em Cabo Verde, onde nasceu, depois do 25 de Abril. Vive desde 1975 no bairro.
— A barraca não tinha número. Não havia telefone. Íamos buscar as cartas à papelaria, lembra.
O primeiro emprego foi como cobrador na Carris. A zona onde estamos sempre foi bem servida de transportes. Apesar de viver ali há décadas, dizem-lhe que não está recenseado no PER. Foi a várias reuniões na câmara, mas nada. Pagava cerca de 40 euros anuais de IMI. Tem um advogado a tratar do assunto.
— Se a câmara vier aqui pôr-me na rua, da maneira que eu vejo fazer, que vida é minha? Para onde vou? Para debaixo da ponte? Sou negro mas sou português de nascimento. Já disse: ‘Vocês querem expulsar os negros de Portugal.’ Andei a dar a minha vida pela pátria portuguesa. E agora: sou um cão?
“Florzinho” usa estas palavras para descrever o que viu acontecer no bairro a pessoas como Mozer Almeida, quase 25 anos. Com o 7.º ano, desempregado, anda a dormir em casa de uma familiar enquanto a situação não se clarifica.
Mozer está em cima de um cadáver: os escombros do que foi a sua casa durante seis anos, no Estrela de África, bairro contíguo ao 6 de Maio. A casa era do avô. Depois do despejo, esteve uns tempos a dormir no carro; outros em casa de um primo, outros em casa de amigos, pessoas que têm as suas próprias vidas.
Há uma lixeira do lado de lá das paredes que ainda estão intactas. Uma delas tem um quadrado que era uma janela, a única do quarto e praticamente a única de casa tirando a porta de entrada. O tio é que o ajudou a fazer aquela janela.
— A parede suava. Quando era calor, era calor demais; quando era frio, era frio demais, diz.
O quarto era pequeno, tinha espaço para uma cama de casal e um armário.
Vivia ali com a avó, doente, que agora está em casa de uma prima. Aos 72 anos, é reformada e recebe uma pensão de 237 euros. Ele não tem direito a subsídio de desemprego, anda à procura do que for preciso. Mas não é chamado. A avó não estava abrangida pelo PER. Saíram pelas 7h30 de dia 3 de Outubro.
— Nunca recebemos nenhuma notificação, queixa-se.
Ninguém da autarquia os contactou a avisar, acusa. Eram os vizinhos que diziam “um dia a vossa casa vem abaixo”. Derrubaram tudo com as coisas dentro, como o frigorífico, conta. Ele levou para o armazém da câmara um colchão, sacos com roupa, loiças.
— Foi o pior dia da minha vida em Portugal. Nunca esperei. Podia ter sido tudo diferente com avisos, ajudas. Mas fomos tratados como animais, com polícia dentro de casa. Empurram as portas e põem as pessoas na rua, entram com armas como se fosse um crime.
À avó, propuseram-lhe ir para um lar ou para Cabo Verde. Não quis.
— Uma pessoa que trabalha 20 anos para depois ser tratada como um animal… A entrarem assim… é barraca mas é a casa, é o lar, o porto de abrigo da pessoa.
Sentiu-se “humilhado”.
— Ainda por cima à frente das pessoas, a tirar as coisas à pressa…Foi o pior dia da minha vida, repete. Não conseguia olhar para ninguém.
ONU de visita
A Habita está a apoiar 25 agregados familiares no 6 de Maio que estão fora do PER. “As pessoas não podem ser despejadas sem que haja uma alternativa”, diz a dirigente, Rita Silva, ex dirigente do Bloco de Esquerda. “Tem de haver uma resposta do Estado, seja do Governo ou da câmara.”
Por causa de situações como a de Mozer ou Ondina, a Habita escreveu várias vezes ao provedor de Justiça que ainda recentemente emitiu uma recomendação para que o PER seja revisto. José de Faria Costa disse na carta enviada ao Ministério do Ambiente (MA) — o supervisor do PER — que “a resposta não pode ser encontrada apenas pelos municípios”.
Contactado pelo P2, o MA não respondeu a tempo desta reportagem. Deu dados: em 1995 estavam identificadas quase 48.500 famílias para realojar, neste momento faltam 3301 famílias. O investimento total até agora no PER foi de 2,4 mil milhões de euros.
Terão sido estes os dados que o MA passou, esta semana, aos dois peritos em direitos humanos da ONU que vieram a Portugal em missão de recolher informações para avaliar o impacto das medidas de austeridade nos grupos mais vulneráveis, focando-se na habitação.
Entre os locais que visitaram, estava o 6 de Maio. Esta terça-feira dão uma conferência de imprensa.
A Habita fez uma queixa à ONU em 2012 sobre demolições e despejos. “Em Cascais, conseguimos que as mulheres com crianças fora do PER fossem realojadas”, diz Rita Silva. “Mas a Câmara da Amadora não quer saber se são crianças ou idosos. Nas últimas demolições do 6 de Maio, vimos um senhor acamado, idoso, deixado em frente a sua casa no chão. Não conseguimos mobilizar ninguém, quem o ajudou foram os vizinhos.”
O mesmo aconteceu meses antes a Suleimane Baldé, 47 anos. Entraram e demoliram-lhe a casa. Ele ficou sem lugar para onde ir. Não recebeu qualquer justificação ou apoio. A fotógrafa Ana Brígida, que acompanhava as demolições (autora do portfólio que acompanha este texto), foi quem lhe tentou arranjar apoio através da linha de emergência social. Deu-lhe dinheiro para os transportes até ele chegar a um Alojamento de Emergência. Mas passados dias teve de sair.
É o Instituto da Segurança Social (ISS) que presta apoio a quem fica na rua, mas “apenas nas situações de grave vulnerabilidade e desprotecção social”, segundo a assessoria de imprensa. E, “na impossibilidade de encontrar alternativa habitacional em tempo útil”, encaminha as pessoas para os Centros de Alojamento de Emergência, “mantendo-se o acompanhamento até à existência de condições de autonomia”.
Operado cinco vezes, Suleimane não pode trabalhar nem voltar à Guiné-Bissau justamente por causa da sua saúde. Agora está no quarto de um amigo, depois de ter dormido numa garagem, ao frio, e numa mesquita na zona. O seu corpo é esguio e visivelmente frágil. Vivia naquela casa com mais quatro homens desde 2010.
Em Fevereiro de 2015, vinha da mesquita e viu tirarem-lhe as coisas de casa. Já o tinham avisado. Mas Suleimane Baldé não tinha qualquer condição para pagar renda, não tem modo de trabalhar. Há oito meses que está sem casa.
— Tenho dificuldade. Fiquei admirado com a câmara e a Segurança Social. Cadáver não precisa de comer. Cadáver não precisa de casa. Cadáver não precisa de dinheiro. Mas uma pessoa que vive precisa de ajuda.
Investimento nas casas
Antropóloga que acompanhou as demolições no bairro de Santa Filomena e no 6 de Maio, Rita Alves não tem dúvidas de que nestes processos estão a ser “violados um rol de direitos, do direito à habitação à intimidade e família”.
Autora da tese de mestrado “Para uma compreensão da segregação residencial: o plano especial de realojamento e o (anti-racismo)”, diz: “O mais grave é a violência e a negação sistemática da dignidade às pessoas”, critica.
Contextualiza o PER: nos anos 1990, aparece um discurso de reconhecimento da periferia “que faz uma racialização e criminalização dos bairros”. O programa é criado num período de projecção de Portugal (primeiro na Lisboa Capital da Cultura 1994 e depois na Expo-98). É um “projecto robusto” de realojamento que também faz “uma limpeza das cidades”. Além disso, o PER usa a palavra barraca quando na verdade "a maioria das casas são construções de alvenaria feitas por pessoas que trabalharam nas grandes obras públicas em Portugal”. Ao realojar, “não está a dar casa”: na maioria dos casos, as pessoas fizeram investimentos, sacrifícios, em territórios simbólicos que elas próprias transformaram.
Na sala de Amália, 39 anos, ouve-se, por estes dias, a retroescavadora que destrói a casa do lado.
— Eles vão partir a minha parede, diz, olhando para trás, assustada ao som da destruição.
— A parede protege o meu quarto. Se partirem a janela, fica na rua — e isso mete-lhe medo.
Ouve-se também, de vez em quando, o choro da neta de dois meses. As paredes tremem, e a filha, de 23 anos, também. Amália foi mãe aos 16/17 anos. Tem outro filho com dez anos. Vive com os três, sozinha. Já fez muita coisa na vida, entre elas, ser ajudante de cozinha, o último emprego que teve. Veio-se embora porque o patrão queria que ela ficasse a trabalhar de segunda a sábado, por 530 euros, em horário repartido (das 10h às 15h e depois das 19h30 às 23h30). Não aceitou. Ao fim de meses a insistir, conseguiu finalmente que ele lhe passasse uma carta para ela receber o subsídio de desemprego. Está a sobreviver com a ajuda do pai do filho e o abono de família de 40 euros.
Mora há 13 anos no 6 de Maio, e é um dos exemplos de quem investiu na casa. Fez remodelações. E as mudanças notam-se. Entra-se por um quintal amplo onde há um sofá por baixo do telheiro. A roupa está estendida ao ar. Dentro de casa ouve-se o som da máquina de lavar. A filha aparece com a bebé. Enquanto pisamos o chão de azulejos em direcção à mesa da cozinha, ela diz:
— Já fiz muitas obras. Mesmo lá em cima, para proteger das chuvas.
A humidade continua, porém, a estender-se pelas paredes. Desde que começaram as demolições, e agora com a retroescavadora à porta, há mais água a entrar. O filho de dez anos tem asma, que “apanhou por causa da humidade”. Antigamente, todos os anos pintava a casa de fresco. Costumava comprar muitas velas e ambientadores para disfarçar o cheiro a esgoto e humidade. Não tem meios para sair dali.
— Uma casa T2 são 400 e tal euros. O ordenado mínimo é 500 e poucos…
A autarquia ajuda-a com um mês de caução e um de renda, mas Amália tem de encontrar uma casa para ela, os dois filhos e a neta por, no máximo, 300 euros mês.
— Pedem contrato de trabalho, fiador, está muito complicado mesmo…
Pagava 150 euros de renda, até que um dia disseram-lhe, na câmara, que o dono da casa tinha resolvido o seu caso pelo PER.
— Fiquei, fiquei. Em 2007, ela chamou-me para eu entregar documentos. Disse que não tenho direito a PER, mas estava no programa Pro Habita [alternativa de apoio a quem estava fora do PER e que foi suspenso por alegada falta de verbas em 2009]. Fiquei com esperança de ter uma ajuda. Vou procurando trabalho, a minha filha também, se me ajudarem com avanço do princípio…
Na autarquia deram-lhe até 19 de Dezembro para resolver a situação.
Lugar conquistado versus guetos
Investigador em Estudos Urbanos, António Brito Guterres lembra que passaram 23 anos desde o PER, e isso significa que muitas pessoas morreram, outras já nasceram, novas foram morar para os bairros. Por isso há uma enorme massa de gente que fica de fora do programa. “Muita da resistência tem que ver com isto. Como é que se pode agarrar este processo sem actualização de recenseamento?”, questiona.
Grande parte do problema, neste e noutros bairros do concelho da Amadora, está no facto de a CMA não ter construído o número de habitações suficientes para o recenseamento que fez, acusa Rita Silva. “O Estado tinha que encontrar soluções para dar habitação àquelas famílias, que não são assim tantas”.
O parque habitacional da autarquia distribui-se por vários bairros periféricos, como o Casal da Mira, da Boba, do Silva ou o Bairro do Zambujal, e por casas dispersas em vários bairros do concelho. Carla Tavares, a presidente, diz que não há espaço nem meios para construir mais habitação social. Reconhece que a solução tipo Casal da Mira é a prova de erros que não se devem cometer. “As dificuldades de gestão e de vivência são imensas.” É um mau exemplo porque “são 750 fogos, com seis andares, não é possível manter as relações de proximidade que havia” e as pessoas vivem longe de tudo.
Nisso a CMA e a Habita estão de acordo. A aplicação do PER destruiu laços de suporte social que existiam e “guetizou”, acusa Rita Silva. Por isso defende “um realojamento in loco”. Explica: “O 6 de Maio hoje está muito mais bem servido em termos de infra-estruturas, serviços públicos e transportes do que as segundas e terceiras periferias para onde a câmara manda as pessoas”, argumenta.
“Parte significativa” do terreno onde está o 6 de Maio “é municipal”, esclarece a autarca. Mas construir e realojar ali os moradores está fora de questão. “Vá visitar o Casal da Mira e percebe o que é realojar uma Azinhaga dos Besouros em 750 fogos.” Quanto a Santa Filomena, os terrenos são privados. "O PER mandata a erradicação dos bairros degradados mesmo em terrenos privados. Ao contrário do que diz o Bloco de Esquerda e o Habita nunca entrou na câmara uma pretensão urbanística para aquele terreno, embora tanto quanto sei Santa Filomena está num fundo fechado", responde.
O Casal da Mira, hoje freguesia da Encosta do Sol, é um lugar para o qual muitos não querem ir. Foi construído em 2004 e as rendas são calculadas com base nos rendimentos declarados, composição e características do agregado familiar. A autarquia financiou este empreendimento com 22,6 milhões de euros.
Pelo menos é essa a narrativa que circula entre moradores e entre quem acompanha os realojamentos. “Rusga ‘rende’ sete presos”, “Polícia cerca Casal da Mira” são títulos da imprensa sensacionalista sobre o bairro.
Com prédios brancos e laranjas todos iguais, é difícil lá chegar de transportes públicos. No Google Maps, por exemplo, não há circuito sugerido para autocarro, camioneta ou comboio.
A porta do prédio para onde Maria da Piedade se mudou há pouco mais de um mês está aberta. Subimos no elevador. Na sala, a árvore de Natal já pisca com as luzinhas. Um móvel castanho tem fotografias de família e estatuetas de porcelana. Uma imagem da Mona Lisa enorme pendurada na parede finta quem está sentado num dos sofás.
É um apartamento com uma boa sala e dois quartos.
— Estou melhor, porque onde estava não estava bem, não tinha sítio certo.
Maria da Piedade, 49 anos, vive aqui com o filho e o companheiro. O outro filho, a filha e a mãe ainda vivem no 6 de Maio, em casas diferentes. Em casa da mãe entra chuva, “estamos fartos de falar com a câmara”, queixa-se. Lá vivem seis pessoas: a mãe e os irmãos, um deles com deficiência auditiva e outros dois com deficiência mental. Está a tentar que sejam realojados junto dela.
Entre a família, foi a primeira a ser realojada. Arranjou um advogado, depois de lhe ter sido dito que estava fora do PER. Morava, na verdade, no Estrela de África, na casa do pai dos filhos. Ele vendeu a casa e “deixou-a na rua”.
Ficou contente por ir para o Casal da Mira, não reconhece o retrato negativo que traçam. Sabe que “a câmara não dá casa”: “aluga casa”. Doente crónica, desempregada, recebe Rendimento Social de Inserção.
Cresceu ao mesmo tempo que os bairros Estrela de África e 6 de Maio. O pai chegou de Viseu eram eles pequenos. Punha-a a pedir esmola, a acartar papelão, a buscar água, ainda o bairro funcionava a gerador.
Lembra-se bem das destruições no Bairro de Santa Filomena, quando subiu a uma retroescavadora para impedir que destruíssem a casa de uma mulher.
— Na maneira como fazem às pessoas, só na Amadora acontece, queixa-se.
Na Damaia sentia-se melhor. Tinha amigos vizinhos, “porta a porta”. Tinha transportes. Aqui só rodoviária: nem Carris nem metro.
— Nunca vou esquecer do bairro 6 de Maio. A nossa casa é a nossa casa.
Reconfiguração social e racismo
António Brito Guterres fez tese de licenciatura em Serviço de Acção Social sobre o realojamento na Pedreira dos Húngaros (que acabou em 2003) e lembra que o que está a acontecer no 6 de Maio não é novidade.
Há movimentos parecidos: quem foi realojado por vezes regressa regularmente ao bairro antigo, caso do Flávio, que todos os dias vai ter com as amigas a Santa Filomena, a uma das poucas casas que resistem. Volta porque pelo menos ali havia vida de bairro, o pai construiu a casa e aumentou-a à medida da sua família, explica num dia de sol. A sensação de ser “um espaço conquistado”, no sentido em que as pessoas tinham capacidade para decidir sobre ele, reforçava uma relação afectiva que parece desaparecer quando as populações são realojadas, analisa Guterres.
Parece que o realojamento é negativo? “Nem sempre”, responde. “Cada câmara fez o realojamento de forma diferente e em tempos diferentes. Houve a sensação de que ia resolver parte da pobreza. Muitas vezes a conotação do realojamento é negativa porque o tecto é melhor mas os outros aspectos são piores, como a mobilidade, o emprego, as relações com os vizinhos. Depois, o centro de saúde fica mais longe e a escola é mais segregada.”
Antropólogo de formação, doutorado em Geografia, Eduardo Ascensão faz parte do Expert, um projecto interdisciplinar e internacional de investigação que estuda a política de habitação e o papel dos peritos no PER. Lembra que desperta o interesse dos colegas estrangeiros por ter incluído uma solução de realojamento maciço, como o Casal da Mira, onde vive Maria Piedade, numa altura em que na Europa e nos Estados Unidos esse tipo de políticas já não se praticava (tinham sido substituídos por outro tipo de modelos como subsídio à compra ou ao arrendamento). “A maior parte desses modelos veio a revelar concentração de pobreza, situações problemáticas que fazem com que haja uma espiral para baixo, com corte das ligações económicas com o resto da cidade”, analisa.
Autor do artigo “A barraca pós-colonial: materialidade, memória e afecto na arquitectura informal”, analisa a relação do PER com o passado colonial, pois a maioria dos recenseados na altura vinham das ex-colónias portuguesas em África. Olha para o programa como “um dos instrumentos da nossa reconfiguração social como país”. Por um lado, foi “maravilhoso”, afirma, por ser o primeiro programa de habitação pública com os imigrantes como destinatários. Por outro, as instituições do Estado, autarquias, IHRU várias vezes trataram “os destinatários de cor do PER com poder coercivo excessivo”. E isso fez com que “ficassem desprotegidos”, praticando assim “formas aproximadas de racismo institucional”, analisa. Exemplos: “A falta de voz com que algumas pessoas ficaram, o facto de em alguns sítios as populações brancas terem sido realojadas primeiro.” Outro exemplo, o programa Retorno: “A indemnização era bastante abaixo de um fogo público e portanto havia aqui a ideia de que ‘ajudamos-te a ir embora e deixas de ser problema nosso’.”
O que o turismo tem que ver com as demolições?
Neste momento, “o PER já não responde à sua função que é realojar, está é a justificar o despejo”, critica Rita Silva.
António Brito Guterres acrescenta: “É intolerável as pessoas viverem em sítios esconsos, sem esgotos. Mas não realojá-las é escandaloso. O que está em causa é que estamos no século XXI e não dão alternativas além da rua. Dão dois meses de renda a quem não tem fiador, nem rendimento, nem muitas vezes documentos.”
Para Eduardo Ascensão, os agregados “não PER” “muitas vezes” têm condições “mais precárias e são mais pobres do que os que foram recenseados em 1993”. Defende que o facto de “serem administrativamente não PER” não os deve excluir.
É taxativo: é preciso concluir o programa e “resolver de vez estes casos”, que têm sido “tratados de forma brutalmente opressiva por parte de agentes do Estado”, “injectando, se for preciso, financiamento adicional”.
Situações como a de Amália, de Suleimane, de Ondina, de Mozer, em que o “dono da barraca” aproveita o seu próprio realojamento para fazer dinheiro, são minoritários, diz. “O Estado tem obrigação de providenciar habitação digna para estas pessoas. Não pode deixar as autarquias em roda livre e ser cúmplice de situações que já foram denunciadas.” Se o investimento no PER foi de 2,4 mil milhões, neste momento para fechar o programa é necessário “uma ínfima parte disto”. Acrescenta: “A transferência de populações deu imenso dinheiro a ganhar a muita gente. Menos às pessoas que lá viviam.”
O que devia ser feito ao PER? Primeiro concluir. Depois, planear com os moradores, defende António Brito Guterres: “Estou habituado a trabalhar em processos com as pessoas, por isso confio nisso para decidir melhor.”
A verdade é que, lembra, o próprio primeiro-ministro, António Costa, parece ter sugerido indirectamente o falhanço do PER na Cimeira Europeia de Bratislava, Eslováquia, em Setembro, ao apresentar como medidas de combate ao terrorismo a regeneração urbana, o desenho de políticas públicas específicas e “regeneração física dos bairros periféricos” na Europa.
Algumas das soluções propostas pela Habita para resolver o problema da habitação social em Portugal passam pela expropriação e acordo com os privados nos terrenos em que foram construídos estes bairros, misturando depois a construção de habitação a custos controlados com a habitação privada (sendo que em alguns casos, como no bairro da Cova da Moura, a reestruturação seria suficiente). Apesar de serem consideradas barracas, é preciso lembrar que os proprietários pagavam Imposto Municipal sobre Imóveis em quase todos estes casos.
A realidade alterou-se muito nos últimos anos. O número de pessoas a viver em barracas passou de 74.603 em 1981 para 6690 em 2011, segundo o INE. Mas a habitação social não chega aos 2%.
Isto mostra que “não há política social de habitação neste país”, diz Rita Silva. “Depois do PER, não houve outro programa de habitação social. O Estado gastou muito dinheiro público desde os anos 1980 em créditos bonificados, que eram subsídios à banca através das famílias. E investiu muito pouco em habitação social”, critica a activista. As verbas deviam ter sido usadas para a habitação social, defende. “Os aumentos dos arrendamentos nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto são preocupantes. A pressão é enorme, faz com que esteja a haver aumentos em toda a AML de Lisboa e Porto, o que afecta a maior parte das famílias.” A consequência é a população ser empurrada para os segundos e terceiros subúrbios.
“A habitação social não tem de ser esta construção pobre, feia, para os pobres”, critica, por outro lado, Rita Silva. E sublinha: “A sociedade acha inaceitável que seja recusado um tratamento hospitalar a alguém por não ter dinheiro. Mas é bastante aceite que uma pessoa seja despejada por não ter dinheiro, nem alternativa.”
Está na Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo o ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar-lhe, e à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis.”