Com estas escavações, abriu-se mais uma porta para a Lisboa setecentista
Numa obra particular na Boavista foram encontrados "relevantes vestígios" do passado industrial da zona, debaixo dos quais estavam preservadas várias estruturas portuárias, que constituem "um importantíssimo testemunho da relação da cidade com o rio Tejo”.
Os vestígios da antiga fábrica metalúrgica Vulcano e Colares, cuja actividade no local remonta a meados do século XIX, foram os primeiros a emergir das escavações arqueológicas recentemente concluídas na zona da Boavista, em Lisboa. Mas para lá dessas marcas, os arqueólogos localizaram também várias estruturas e materiais associados a um passado bem mais longínquo: o da praia que ali existiu, antes da construção do aterro que veio a conquistar terreno ao rio.
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Os vestígios da antiga fábrica metalúrgica Vulcano e Colares, cuja actividade no local remonta a meados do século XIX, foram os primeiros a emergir das escavações arqueológicas recentemente concluídas na zona da Boavista, em Lisboa. Mas para lá dessas marcas, os arqueólogos localizaram também várias estruturas e materiais associados a um passado bem mais longínquo: o da praia que ali existiu, antes da construção do aterro que veio a conquistar terreno ao rio.
Estas escavações decorreram num imóvel localizado entre a Rua D. Luís I e a Rua Boqueirão do Duro, no qual a Fidelidade Property Europe está a construir um edifício de escritórios. Os trabalhos arqueológicos, a cargo da Era - Arqueologia, tiveram início em Abril e chegaram agora ao fim. Já o novo edifício, no qual se instalará uma firma de advocacia, deverá estar pronto em Setembro de 2017.
Numa visita do PÚBLICO à obra, a coordenadora das escavações arqueológicas explica que a Fábrica Vulcano e Colares resultou da união, em 1915, de duas importantes siderurgias lisboetas: a Fábrica Colares, que tinha sido fundada em 1809 e tinha sede da Rua Augusta, e a Fábrica Vulcano, que estava instalada na zona do Conde Barão desde o último quartel do século XIX. No local, conta Inês Mendes da Silva, foram fabricados por exemplo “carros de rega e de bombeiros” e, mais tarde, “ferros forjados para varandas e mobiliário para a via pública”.
Dessas instalações fabris, que acabaram por ser vendidas a Henrique Sommer na década de 30 do século XX e que tiveram depois diferentes utilizações, foram agora descobertas várias estruturas e vestígios. Esses achados, destaca a arqueóloga, são de diferentes fases da vida da fábrica, tendo sido possível identificar marcas do tempo em que se trabalhava com a tecnologia a vapor e outras de quando se utilizava já energia eléctrica.
Esse aspecto é também sublinhado pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), que nota que no Boqueirão do Duro foram encontrados “relevantes vestígios de património industrial” e que, “para além da identificação do edifício mais antigo da fábrica, foi possível apreender a evolução e as adaptações tecnológicas realizadas ao longo dos tempos”. “Desde a transformação das máquinas a vapor, à utilização da energia eléctrica, de gás pobre e finalmente do petróleo”, diz-se em respostas escritas enviadas ao PÚBLICO.
Depois de terem sido retirados do local esses vestígios, e de terem sido desmontados os alicerces da fábrica (que em tempos idos se prolongava entre o Largo do Conde Barão e a Avenida 24 de Julho), os arqueólogos depararam-se com “contextos de realidades portuárias”. Como explica Inês Mendes da Silva, estão em causa várias “realidades distintas”: desde logo uma relacionada com a utilização do local como cais e outra com o seu passado ligado à construção naval.
A praia da Boavista
Como sintetiza a DGPC, as estruturas e vestígios encontrados sob as estruturas industriais estão “associados à praia da Boavista, preexistente à construção do aterro do mesmo nome para conquistar terreno ao rio”. Esta entidade fala no registo de “pelo menos três fases distintas da intensa dinâmica de ocupação daquela margem da cidade de Lisboa e da antiga faina marítima do Tejo entre os séculos XVIII e meados do XIX”.
A esse nível, a DGPC destaca que na obra da Fidelidade Property Europe foi revelada “uma estrutura para utilização portuária, construída com o reaproveitamento de peças náuticas de madeira, de uma ou mais antigas embarcações”. Destacados são também “um cais/rampa suspensa de madeira perpendicular ao rio” (que terá sido “planeado num complexo sistema de construção que permitisse resistir às influências das marés e sustentar uma estrutura de topo de apoio à carga e descarga de pessoas e bens das embarcações que aqui acostavam”) e, finalmente, “um estaleiro de construção naval na praia fluvial, com vários elementos de madeira de feição náutica, bem como vestígios de desbaste e corte da madeira”.
Nas respostas enviadas, a DGPC constata que “a boa preservação da maioria destes vestígios arqueológicos deve-se ao facto de a expansão da cidade em direcção ao rio ter sido realizada mediante sucessivos aterros, ocorridos ao longo do tempo, mas sobretudo a partir do século XIX”.
Para esta entidade, “o conjunto artefactural exumado constitui um importantíssimo testemunho da relação da cidade com o rio Tejo”, relação que está bem patente em alguns dos vestígios encontrados. Entre eles um “conjunto de toros de madeira de grandes dimensões (cerca de 10 metros de comprimento) com marcas gravadas de preparação”, “os restos de uma pequena embarcação” que se julga ser do século XVIII, “uma âncora com alma de madeira” e "dois canhões em ferro".
Questionada sobre o futuro dos achados, a DGPC informou que “após os trabalhos de registo sistemático dos artefactos de madeira e de assegurada a sua conservação preventiva algumas das peças serão depositadas num local com condições para o desenvolvimento de trabalhos complementares”, após o que poderá ocorrer a “publicação científica e preservação/musealização destes objectos de importante valor histórico, artístico e simbólico”.