Por que estamos a andar para trás
Foi a melhoria das condições materiais de vida que permitiu um aprofundamento e melhoria da democracia e é isso que hoje emperrou e nos faz voltar para trás.
Várias coisas que sempre defendi, prezei e considerei importantes na vida política das democracias europeias estão em profunda crise e não penso que sejam capazes de sair dessa crise tão cedo. É o caso da emancipação da vida política democrática do dilema esquerda-direita, do centrismo e da moderação “central” que partidos do centro-direita e do centro-esquerda traziam às democracias, isolando os extremismos, é a aceitação de que as políticas em democracia são pela sua própria natureza plurais e resultam de uma escolha livre e não da imposição do “não há alternativa”, e que, num certo sentido, os eleitores podem, por tentativa e erro, “experimentar”, sempre com recuo e alternativa. A tudo isto somava-se a luta pela prevalência de uma cultura política civilizacional que distinguia a demagogia da democracia. Tudo isto está em profunda crise e não adianta esperar melhorias, porque o tempo não volta para trás em função dos nossos desejos, embora, num certo plano universal, esteja mesmo a voltar para trás. Para o lado errado do de trás.
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Várias coisas que sempre defendi, prezei e considerei importantes na vida política das democracias europeias estão em profunda crise e não penso que sejam capazes de sair dessa crise tão cedo. É o caso da emancipação da vida política democrática do dilema esquerda-direita, do centrismo e da moderação “central” que partidos do centro-direita e do centro-esquerda traziam às democracias, isolando os extremismos, é a aceitação de que as políticas em democracia são pela sua própria natureza plurais e resultam de uma escolha livre e não da imposição do “não há alternativa”, e que, num certo sentido, os eleitores podem, por tentativa e erro, “experimentar”, sempre com recuo e alternativa. A tudo isto somava-se a luta pela prevalência de uma cultura política civilizacional que distinguia a demagogia da democracia. Tudo isto está em profunda crise e não adianta esperar melhorias, porque o tempo não volta para trás em função dos nossos desejos, embora, num certo plano universal, esteja mesmo a voltar para trás. Para o lado errado do de trás.
Explico-me, mesmo com o risco de algumas simplificações: a dualidade direita-esquerda sempre me pareceu uma maneira empobrecedora de ver a política europeia desde a Segunda Guerra Mundial, e em particular depois dos anos 60. Saíra-se em 1945 dessa “guerra civil europeia” que opunha fascismo e comunismo e, mesmo que um dos pólos dessa “guerra”, o comunismo, continuasse, o confronto com ele era feito pelas democracias e por governos moderados, com partidos reconstruídos nesse pós-guerra como a Democracia Cristã italiana, os gaulistas e os socialistas franceses, os conservadores e os trabalhistas ingleses e a social-democracia alemã. Não foi um caminho linear, até porque subsistia uma questão relevante para várias potências europeias, a questão colonial, que levou ao ascenso dos movimentos do Terceiro Mundo, cuja importância foi acentuada pela revolução argelina e cubana e pelos movimentos de libertação africanos, a que se somou a crise mortífera da unidade do movimento comunista com a dissidência chinesa. Os soviéticos continuaram a fazer todos os esforços para manter no Terceiro Mundo a bipolarização da Guerra Fria, mas já não o conseguiram na Guerra do Vietname e, com a emergência de novos pólos revolucionários, perderam a hegemonia.
A URSS mudou também com Khrutchov, que foi o primeiro dirigente comunista a compreender plenamente que uma guerra termonuclear não tinha vencedores, só vencidos, e por isso abandonou a ideia, que existia desde a criação dos primeiros países socialistas e depois do “campo socialista”, de que poderia haver uma “luta de classes mundial” que se materializasse numa guerra entre os países socialistas e capitalistas. Uma parte da crise da dualidade esquerda-direita começa também aqui. Khrutchov é uma das mais importantes personagens do século XX, mesmo que raramente figure nas listas dos “dez mais”.
Os anos 60 trouxeram um novo alento para as democracias, mesmo escrevendo direito com linhas tortas. Uma geração que chegou à política nesses anos ajudou a uma renovação cultural significativa das democracias envelhecidas e trouxe novos temas e novas “libertações”, em particular nas questões de género e de raça, que iam muito para além da agenda social tradicional dos movimentos sindicais, comunistas e socialistas radicais que existiam na Europa. O radicalismo inicial da geração de 60 ajudou a criar um ponto sem retorno e a entrada desses homens e mulheres no mainstream político fortaleceu as democracias e definiu-lhes novos objectivos. Essa geração não tinha os complexos reverenciais que a esquerda, mesmo a não-comunista, tinha em relação à URSS, integrou na luta pela liberdade os judeus perseguidos e os dissidentes soviéticos e fez parte de alianças sem precedentes como aquela que deu origem ao Solidarnósc, onde o Papa e padres católicos e militantes e intelectuais trotskistas ajudaram a acabar com a Guerra Fria e a derrubar o Muro.
Foi também nesta altura que a dicotomia esquerda-direita começou a perder sentido. Na verdade, foi uma perda de sentido mais instrumental do que afectiva. As “tradições” e o sentido da história pessoal e familiar continuavam muito presos a cem anos de arregimentação, e permanecia igualmente a questão filosófico-política do optimismo e do pessimismo antropológico, que definia uma divisão, mas não era nem é suficiente para lhe definir as fronteiras no quotidiano. Mas a verdade é que, a partir dos anos 60, as fronteiras nítidas do passado começavam a esbater-se e a frase taxativa de Alain sobre quem dizia que não havia direita nem esquerda era de direita, começava a perder sentido.
Como de costume, a perda de distinção começava no plano cultural: Ezra Pound era fascista, e muitos dos seus poemas remetem para uma mundividência que se pode classificar com rigor de fascista, mas podia-se ler Pound já sem incomodidade. E depois nas issues, nas questões, o que era de direita e de esquerda, por exemplo, na ecologia? Historicamente, há uma tradição ecológica de direita, mas muitos dos agrupamentos mais activos criados nos últimos 50 anos “movem-se” à esquerda. Há também uma tradição de esquerda que vem dos anos 30 hostil à natureza e favorável a uma intensa industrialização, “moldando” o mundo ao “novo” homem e à sua emancipação e convém não esquecer que o socialismo era o “poder dos sovietes” mais a “electrificação”. Um operário do rust belt que votou em Trump porque este é a favor do carvão e não quer acordos que, em nome da mudança climática, hiper-regulamentem indústrias poluentes, está numa encruzilhada em que ideias de esquerda e direita tradicionais se cruzam, como estão algumas municipalidades comunistas que fecham os olhos às raras empresas industriais que dão emprego nos “seus” concelhos e que, se fechassem, acentuariam a “desindustrialização”. E o que é de esquerda e de direita na questão da droga? Intelectuais de direita defenderam a liberalização do consumo de drogas com mais convicção do que muitos da esquerda. O mesmo acontecia com as questões de género, e, em particular com a homossexualidade. Se formos ver a tradição, a criminalização da homossexualidade foi aplicada à esquerda e à direita; por isso, onde é que filio a causa da liberdade de viver como se entende?
Podia-se dizer que aquilo que em Portugal se chamava “causas fracturantes” não era suficiente para eliminar a demarcação política, até porque ela permanecia na questão social. Mas elas assumiam uma importância considerável porque no mundo ocidental, nas grandes metrópoles, a melhoria das condições materiais associadas a uma nova pluralidade de opções de vida, sociais, escolares, de lazer, familiares, relacionais, as tornavam parte da democracia e da igualdade, por exemplo entre homens e mulheres, e de possibilidade sem exclusão de escolhas no plano sexual, que se revelavam parte da liberdade que cada um exigia para si próprio. Por isso, na vida e nas opções que se incorporaram na política nas democracias estavam cada vez mais questões em que a dicotomia esquerda-direita não tinha sentido. A emergência de partidos como o Partido Libertário nos EUA, ou mesmo em Portugal, o percurso original do PPM, ou a aparição mesmo que débil de uma esquerda liberal e de uma direita emancipada nos “costumes” revelavam essa nova tendência. Os partidos mais conservadores, o PCP, o PSD, o CDS e o PS, e a influência política da Igreja, ainda forte mas em crise, tentaram travar este processo, mas acabaram por se lhe render, uns mais, outros menos.
Mas a chave da questão a que vamos voltar é aquela em que começa o parágrafo anterior: a melhoria das condições materiais de vida. Foi isso que permitiu um aprofundamento e melhoria da democracia e é isso que hoje emperrou e nos faz voltar para trás. É porque o melhorismo que é intrínseco ao objecto das democracias, o bem comum, está em crise, que estamos a voltar para trás. O mundo novo que está a vir é um recuo no modo de pensar, nas palavras e infelizmente nas acções. Lá vou eu ter que voltar a falar de esquerda e de direita, o que bem atravessado me está. Mas se o mundo se tornou cavernícola, não posso agora pedir-lhe que pare às cinco horas para tomar chá. Continuemos.