Uma sociedade aberta e sem modelo integra bem os imigrantes

A chegada organizada de imigrantes tem tudo para beneficiar os países que os recebem. O problema são aspectos como “o espectáculo de Calais”, que dá uma imagem negativa a uma realidade positiva, diz Alejandro Portes, sociólogo especialista em fenómenos migratórios.

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Os Estados Unidos souberam ao longo dos séculos integrar milhões de imigrantes e fazer seus cidadãos os seus filhos, mas Donald Trump pode perturbar o que era até agora um processo natural — e fazê-lo quando por incorporar estão aqueles que ameaça discriminar, os muçulmanos. Basta que cumpra as suas promessas e imite o que tem feito a França. É o que Alejandro Portes chama “criar um problema que antes não existia” ou “uma profecia auto-realizada”.

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Os Estados Unidos souberam ao longo dos séculos integrar milhões de imigrantes e fazer seus cidadãos os seus filhos, mas Donald Trump pode perturbar o que era até agora um processo natural — e fazê-lo quando por incorporar estão aqueles que ameaça discriminar, os muçulmanos. Basta que cumpra as suas promessas e imite o que tem feito a França. É o que Alejandro Portes chama “criar um problema que antes não existia” ou “uma profecia auto-realizada”.

Um dos grandes estudiosos dos fenómenos migratórios, Portes é cubano-americano e começou por estudar os fluxos de cubanos nos EUA, dando especial atenção às segundas gerações. Aos 72 anos, acaba de publicar Spanish Legacies, um livro sobre os filhos de imigrantes em Espanha. Veio a Lisboa receber o grau de doutor honoris causa da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova.

Numa conversa em “portunhol”, falou com preocupação da chegada “desorganizada” recente de muitos refugiados à União Europeia. Por ter sido “caótica”, afirma, “reforçou o nacionalismo e o discurso populista de direita, tanto na Europa do Leste, como noutros países”.

Tudo isto tem de ser visto olhando para “o momento que vivemos de evolução do sistema mundial, que é um momento de reacção às consequências da globalização”, diz o especialista em migrações e sociologia económica. “Estes fluxos reforçam as ideias que levaram à vitória do ‘Brexit’ e também à vitória de Trump”, defende. Mais: “Através do reforço do nacionalismo, comprometem o próprio destino da UE, que é um projecto de globalização.” Por isso, “é muito importante neste momento a Europa saber gerir estes fluxos, o que vem da Síria, com os refugiados, mas também o que vem de África”.

Portes diz compreender a decisão da chanceler alemã, Angela Merkel, de “abrir as portas” aos sírios, há pouco mais de um ano. Quase um milhão de sírios chegou assim à Alemanha, mais ou menos o mesmo número de pessoas que entraram nos outros países da UE ao longo de 2015. “É certo que a Europa tem de lidar com a situação da Síria, uma nação que explodiu, mas a forma correcta era começar por apoiar a educação e os cuidados de saúde nos campos e nos países vizinhos”, defende.

“Talvez tivesse sido melhor que a UE se empenhasse em melhorar a situação destes refugiados na Jordânia, Turquia, Líbano, e depois organizasse a vinda de parte deles”, defende o professor emérito de Sociologia da Universidade de Princeton e investigador da Universidade de Miami. Até porque “a mesma Merkel a seguir teve de ir à Turquia praticamente subornar os turcos para que travassem este fluxo”, recorda. Com o acordo entre a UE e a Turquia, de Março passado, Ancara começou a limitar as saídas de sírios, em troca de dinheiro e da promessa de liberalização de vistos para os turcos.

Não é só a chegada desorganizada que os líderes europeus têm de evitar, diz Portes, é também aquilo que descreve como o “espectáculo de Calais”, o surgimento de campos improvisados à vista de todos. “O espectáculo de Calais é muito negativo em termos de opinião pública e também reforça o sentimento de extrema-direita. Basta a visão daquele campo, faz pensar que a imigração é totalmente negativa e tem de ser travada. Não é assim, tem de ser gerida e organizada, mas é positiva.”

Um fenómeno em geral positivo

Calais mal chega a ser uma gota no mar de refugiados e imigrantes na Europa — que, por sua vez, são uma gota dos 60 milhões de refugiados e deslocados internos no mundo —, “mas é muito visível”. Calais a cidade francesa perto do Canal da Mancha, onde nasceram ao longo dos anos vários campos improvisados de gente à espera de tentar dar o salto para Inglaterra. O Governo francês tem estado a desmantelar estes campos, num processo criticado por não ter sido garantido que todas as pessoas tenham lugar nos centros de acolhimento.

Portes é um cientista, muitas vezes surpreendido pelos resultados dos seus estudos, e recusa generalizar sobre a natureza positiva ou negativa da imigração. “Depende das circunstâncias, afirmar que é positivo ou negativo não é aceitável.”

Mas sempre vai dizendo que, “em geral, a imigração foi positiva para os países receptores, que puderam utilizar os imigrantes como fonte de mão-de-obra e foram enriquecidos com a sua cultura; e também pode ser positiva para os países de imigração, onde se aliviam os problemas de desemprego, chega dinheiro e, no caso dos profissionais, também há a transferência de conhecimento, facilitando-se o desenvolvimento desses países”, como aconteceu com os indianos e com os chineses nos Estados Unidos.

O estudo mais recente que realizou, sobre a segunda geração de imigrantes em Espanha (o livro Spanish Legacies) reforçou uma ideia que já tinha — muitas vezes, um não-modelo é melhor do que uma integração imposta. “Em Espanha, que tem uma população muçulmana muito grande, marroquina sobretudo, a grande maioria continua a ser muçulmana, mas também se identifica como espanhola. Isto acontece porque a sociedade foi aberta e também por não ter modelo”, diz. “A sociedade permite que os imigrantes e os seus filhos se vão integrando eles mesmos, sem um processo vertical.”

Já França é o exemplo de “um processo de integração fracassado”, daquilo a que os sociólogos chamam “etnicidade reactiva”. O problema “acontece quando os filhos de imigrantes, os que se convertem em população do país, são discriminados por motivos de raça ou religião e se percebem como estando à margem da sociedade dominante, aí pode gerar-se um processo de ‘etnicidade reactiva’”. O que isto significa é “uma recusa da sociedade receptora e uma visão de ‘nós contra eles’.”

Uma situação impossível

Nos EUA, isso acontece com os filhos de mexicanos. “Os pais são discriminados pelos níveis baixos de educação e pelas características físicas, raciais. O que acontece? Surgem os gangs em cidades como Los Angeles. Esta desordem urbana tem que ver com um processo de etnicidade reactiva dos filhos, não dos pais”, descreve. “Na Europa do Norte é ainda pior, sobretudo em França, onde não teve sucesso a integração positiva de muitos filhos de imigrantes, muçulmanos principalmente. A sociedade, e mesmo a polícia, continua a recusar estas pessoas como francesas. Neste caso, este processo leva também à radicalização, este descontentamento expressa-se através de uma reinterpretação do islão radical.”

Portes lembra como a grande maioria dos atentados terroristas, em França e noutros países europeus, foram feitos por “cidadãos nascidos e educados no país e não por imigrantes de primeira geração, uma indicação de um processo de integração falhado”. E compara com Espanha, onde isto acontece menos.

Sem nunca ter estudado a imigração em Portugal, imagina que por aqui se viva uma situação mais parecida com a espanhola, até por não haver indicações do contrário. Em Portugal, fala de uma imigração pouco qualificada, constituída por “trabalhadores vindos das ex-colónias e pequenos comerciantes chineses, indianos, paquistaneses, uma presença empresarial positiva para o desenvolvimento das cidades e para o crescimento da população”, diz. “Os seus filhos, se forem à escola, podem converter-se numa parte importante dos novos portugueses.”

O que nunca se pode fazer é o que fez e faz o Estado francês. “França diz aos imigrantes: ‘Têm de se transformar em franceses, não podem continuar a ser quem são, não podem usar véu, têm de se integrar no modelo republicano e laico para serem como nós.’ Mas nunca são, mesmo os que fazem o esforço de se integrarem continuam a ser vistos como marginalizados, diferentes”, diz. “Como ser francês em França querendo ser francês e não conseguindo ser aceite como francês. É uma situação impossível.”

Os perigos de Trump

França não aprende e responde “com mais polícia e repressão”. O sociólogo teme que algo de semelhante aconteça nos EUA de Donald Trump. “Até agora, tínhamos uma integração orgânica, positiva, e por isso é que o país conseguiu integrar milhões e os seus filhos agora são americanos. Mesmo a pequena população de origem muçulmana tem-se integrado naturalmente, ainda sem estar incorporada. Mas com Trump pode haver um processo de marginalização, e isso é muito perigoso. Cria um problema que não existia antes, chama-se a isso ‘profecia auto-realizada’.”

Por mais que a sociedade americana, ou parte dela, queira resistir. “A eleição de Trump não promete nada de bom.” Travar a imigração não é possível, são as necessidades económicas que ditam os seus fluxos, “quer de mão-de-obra especializada. quer de gente para trabalhar na agricultura e nos serviços”. Mas “pode acontecer, como em França, um processo cumulativo, em que aconteçam atentados terroristas por parte dos filhos de imigrantes e estes gerem mais repressão e marginalização desta população, o que, por sua vez, gera mais formações reactivas, até se criar um círculo vicioso”.

Isto, mesmo existindo “cidades-santuário, como Nova Iorque, que pode considerar-se um modelo, soube integrar todos os imigrantes, um pouco como Miami e Chicago”. Já “no interior do país a situação pode ser muito diferente”. “Esperemos que não, vamos ver.”