Bob Dylan e o Nobel: "Nunca pensei ser possível"

No discurso lido no banquete em Estocolmo, músico diz que estar na mesma lista que Camus e Hemingway é "inexplicável por palavras".

Foto
AFP/FRED TANNEAU

“Ter recebido o Prémio Nobel da Literatura é algo que nunca pensei ser possível". No discurso que o músico norte-americano enviou e que foi lido durante o banquete da cerimónia de entrega dos prémios Nobel, em Estocolmo, Bob Dylan pediu desculpa por não conseguir estar ali em pessoa mas referiu que estava em espírito e que se sentia honrado por receber um prémio tão prestigiante.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

“Ter recebido o Prémio Nobel da Literatura é algo que nunca pensei ser possível". No discurso que o músico norte-americano enviou e que foi lido durante o banquete da cerimónia de entrega dos prémios Nobel, em Estocolmo, Bob Dylan pediu desculpa por não conseguir estar ali em pessoa mas referiu que estava em espírito e que se sentia honrado por receber um prémio tão prestigiante.

"Desde muito novo que estou familiarizado e leio todos os trabalhos de todos os que tiveram o privilégio de receber tal distinção: Kipling, Shaw, Thomas Mann, Pearl Buck, Albert Camus, Hemingway. Estes gigantes da literatura cujas obras são ensinadas nas salas de aula, guardadas em bibliotecas por todo o mundo e sempre referidas num tom reverencial sempre me causaram uma marca profunda. Que eu agora faça parte dos nomes dessa lista é inexplicável por palavras." O discurso do músico foi lido pela embaixadora dos Estados Unidos na Suécia, Azita Raji, durante este banquete que se repete todos os anos.

Contou ainda que estava em digressão quando recebeu a surpreendente notícia do Nobel e que demorou mais do que alguns minutos a processá-la. O músico norte-americano contou que pensou em William Shakespeare (no cânone máximo da literatura inglesa, sublinhamos nós). Isto, justificou Dylan, porque o dramaturgo inglês na sua época também nunca pensou na sua escrita como literatura: “As suas palavras foram escritas para serem ditas no palco e não lidas. Quando estava a escrever Hamlet, tenho a certeza que estava a pensar em muitas coisas diferentes ao mesmo tempo: 'Quem são os actores certos para estes papéis?', 'Como é que isto deve ser encenado?', 'Quero mesmo que isto se passe na Dinamarca?'. A sua visão criativa e ambições eram o mais importante na sua mente, mas também havia assuntos mais mundanos que o preocupavam. 'As finanças estão bem?', 'Os meus mecenas têm bons lugares?', 'Onde vou encontrar um crânio humano?'. Aposto que a última coisa em que Shakespeare pensou foi na questão 'Isto é literatura?'". Por isso, agradeceu à Academia Sueca ter considerado essa questão e por lhe ter dado uma resposta tão maravilhosa.

Tal como Shakespeare, Bob Dylan explicou que o que o realmente ocupa é a continuação da sua carreira artística e todos os aspectos práticos ligados a esse esforço. "Quem são os melhores músicos para estas canções?, Estou a gravar no estúdio certo? Esta canção está na nota correcta? Há coisas que nunca mudam, nem em 400 anos. Nem por uma vez tive tempo para perguntar a mim mesmo: 'As minhas canções são literatura?'" 

The partial view '~/Views/Layouts/Amp2020/VIDEO_CENTRAL.cshtml' was not found. The following locations were searched: ~/Views/Layouts/Amp2020/VIDEO_CENTRAL.cshtml
VIDEO_CENTRAL

Quando o prémio para Dylan foi anunciado em Outubro - "por ter criado novas formas de expressão poética no quadro da grande tradição da música americana", justificou a Academia Sueca - houve uma certa polémica pelo Nobel ter distinguido alguém cujo ofício é o de escrever canções e algumas dúvidas sobre se isso podia ser considerado literatura. O académico Horace Engdahl, membro da Academia Sueca e do Comité para o Nobel da Literatura, que este sábado justificou a atribuição do prémio a Bob Dylan antes da actuação da cantora, lembrou que a noção de literatura tem mudado ao longo dos tempos e que Bob Dylan devolveu a “linguagem da poesia ao seu expoente máximo, que estava perdido desde os românticos”. E que Dylan o fez, não a cantar sobre eternidades, mas a falar sobre aquilo que nos rodeia: “Como se o oráculo de Delfos estivesse a ler as notícias do final do dia.”

“De repente, grande parte da poesia dos nossos livros parecia anémica e as letras de canções rotineiras que os seus colegas escreviam pareciam pólvora antiquada depois da invenção da dinamite. Rapidamente, as pessoas deixaram de o comparar a Woody Guthrie e a Hank Williams para se virarem para Blake, Rimbaud, Whitman e Shakespeare", acrescentou o académico.

Antes de falar de Shakespeare, Dylan contou que se lhe tivessem dito que havia alguma possibilidade de ganhar o Prémio Nobel acharia isso tão provável como aterrar na Lua. "De facto, durante o ano em que nasci e mesmo alguns anos depois, não houve ninguém no mundo que considerasse suficientemente bom para ganhar este Prémio Nobel. Assim, reconheço que estou numa companhia rara, para dizer o mínimo."

O discurso de Dylan encerrou um dia marcado pela actuação de Patti Smith em Estocolmo. A amiga de Dylan cantou e emocionou-se. Na cerimónia de entrega dos prémios Nobel, na tarde deste sábado, em Estocolmo, a artista teve um momento de bloqueio, esqueceu-se da letra, interrompeu a actuação, pediu desculpa dizendo que estava muito nervosa, solicitou à orquestra para recomeçar e retomou a canção A hard rain's a-gonna fall, de Bob Dylan.

Durante o discurso Dylan também falou de si enquanto performer: "Fiz dúzias de discos e toquei em milhares de concertos em todo o mundo. Mas são as minhas canções que estão no centro vital de quase tudo o que faço. Parece que encontraram um lugar nas vidas de muitas pessoas através das mais diferentes culturas e eu estou grato por isso."