O estado do mundo no interior de Yves Tumor

À flor da pele, paranóico, desordenado e inquieto: o mundo pessoal do americano confunde-se com o estado do mundo em Serpent Music. É o fascinante álbum que apresentou há dias no festival Madeira Dig. “Aqui, com o infinito do Atlântico, tudo parece mais sereno”, afirma ele.

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Cresceu num meio conservador, o Sul dos EUA, sentindo que tudo o que fugisse aos padrões mais consensuais, ao nível das relações sociais ou das identidades sexuais, era subtilmente reprimido

Parece deslocado ali, alto, elegante, de roupas exóticas, logo pela manhã, na sala onde é servido o pequeno-almoço na Estalagem da Ponta do Sol, com vista para o imenso Atlântico. Ele parece ser mais das confusões urbanas. Naquele contexto sossegado não passa despercebido o multi-instrumentista, performer e produtor Yves Tumor, que lançou Serpent Music, um dos álbuns mais sedutoramente estranhos dos últimos meses.

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Parece deslocado ali, alto, elegante, de roupas exóticas, logo pela manhã, na sala onde é servido o pequeno-almoço na Estalagem da Ponta do Sol, com vista para o imenso Atlântico. Ele parece ser mais das confusões urbanas. Naquele contexto sossegado não passa despercebido o multi-instrumentista, performer e produtor Yves Tumor, que lançou Serpent Music, um dos álbuns mais sedutoramente estranhos dos últimos meses.

O americano esteve há dias na ilha da Madeira, no contexto do festival Madeira Dig, e em Abril de 2017 actuará em Lisboa. Foi entre as localidades da Ponta do Sol e da Calheta, o vértice onde se realiza o festival, que o encontrámos. Tem fama de ser renitente ou até belicoso com a imprensa, mas ali revelou-se o oposto, aparentando até alguma timidez e sentido de humor.

“Passam a imagem que sou muito enigmático mas isso acontece porque não faço questão em transmitir muita informação sobre mim”, diz-nos, rindo-se de seguida, gerando uma analogia sobre si próprio. “Dizem que a minha música é fantasmagórica, por isso, no fim de contas, devo ser mesmo um fantasma!”

A sua vida até agora tem sido vulgar. É a habitual história do adolescente que se foi isolando, construindo o seu próprio universo. Mais cedo ou mais tarde essa mundovisão haveria de ser projectada cá para fora. No seu caso foi-o em forma de música, arte e performance. “Aquilo que faço não é uma mera sublimação da minha existência, mas sim, por vezes é difícil diferenciar a pessoa que sou do artista. É uma fronteira ténue.”

Alienígena

Ele não é fácil de situar. Cresceu em Knoxville, no estado do Tennessee, mas já circulou por Los Angeles, Miami, Berlim e Leipzig, vivendo agora na cidade italiana de Turim. O seu último álbum foi lançado pela berlinense PAN, casa da electrónica mais conceptual (M.E.S.H., Lee Gamble, Helm) mas antes já havia gravado para a Dogfood Music Group de Mykki Blanco, conotada com o queer rap de Nova Iorque, ou a NON Worlwide. Algumas pessoas referem-se a ele como Rahel Ali, outras chamam-lhe Sean L. Bowie, mas seja qual for a sua identidade é como Yves Tumor que se tornou conhecido, apesar de já ter efectuado lançamentos com outros pseudónimos como Bodyguard (com James Ferraro), Teams ou Bekelé Bernahu.

A sua música contém traços de várias linguagens (dub, pop, hip-hop, electrónicas, ruído, ambientalismo, soul, música concreta, psicadelismos) mas o todo é de difícil decifração, parecendo algo transcendente e longínquo, entre a pop etérea, a electrónica psicadélica, atmosferas hipnóticas, cenários pós-industriais e o canto bíblico, de onde se destaca uma voz que por vezes diz coisas indecifráveis, ruminando sobre batimentos cardíacos.

Muitas vezes é conotado com nomes como Mikky Blanco, Le1f ou Lotic, ou noutra perspectiva, com Arca ou até com FKA Twigs, mas a sua música e atitude perante a realidade é ainda mais alienígena. Cresceu a ouvir Nirvana ou Velvet Underground, mas são os Throbbing Gristle dos anos 1970 e 1980, e o seu mundo industrial, apocalíptico e paranóico, e a reflexão performativa sobre as identidades sexuais do seu membro mais icónico, Genesis P-Orridge, que reivindica como principal referência.

Por vezes parecem canções que evocam a lembrança nebulosa de algo que já foi, com espaços emotivos abertos mas desolados, e uma grande carga espiritual, como se fosse, em termos formais, uma descontextualização da música gospel, transpondo-a para novas funções artísticas e sociais. “Não sou religioso e parece-me até que as religiões podem ser negativas, mas isso não significa que a espiritualidade não possa ser importante para o equilíbrio. Não tenho que ser devoto de Deus, de um qualquer Deus, para acreditar na minha transcendência.”  

Essa relação ritualista com a vida sente-se também nas performances. Se em disco a sua música é claustrofóbica, em palco sente-se uma atmosfera irrespirável, mas com a dimensão catártica e interactiva das suas prestações a vir ao de cima, como testemunhou quem o viu na última segunda-feira no Mudas, museu de arte contemporânea da Madeira, na Calheta. “Gosto da comunicação com o público a partir do palco ou até de ultrapassar essa fronteira e a maior parte do tempo quando estou em palco sinto prazer porque sou eu próprio o que é um privilégio”, diz, reflectindo que “se no final as pessoas se sentirem estimuladas, desconfortáveis ou diferentes, fico muito satisfeito.”

Ao longo de um festival que aposta de forma consistente em músicas exploratórias, outras actuações deixaram rasto, como as de Peder Mannerfelt, Sonic Boom, Helm ou Zeena Parkins, mas ele está numa outra fase do seu percurso. Sente-se uma vontade indómita de expor o seu trabalho. “Tudo isto, a música, a minha arte, as pessoas que se interessam pelo que eu faço, viajar, este lugar e esta ilha tão bonita onde estamos, faz parte daquilo que sempre desejei para mim próprio, por isso sinto que tenho de devolver tudo isso através da forma que sei: em palco, dando-me. Poder actuar em frente às pessoas é o que sempre desejei.”

Cresceu num meio predominantemente conservador, o Sul dos Estados Unidos, sentindo que tudo o que fugisse aos padrões mais consensuais, ao nível das relações sociais ou das identidades sexuais, era subtilmente reprimido. A solução era fechar-se no quarto, na adolescência, tomando contacto com o resto do mundo através da internet ou da música, que começou a praticar de forma autodidacta aos 17 anos, tocando uma panóplia de instrumentos como o piano, a guitarra, o baixo ou a bateria.

Aos 20 anos resolveu rumar para outras paragens dos Estados Unidos. Primeiro, São Diego. Depois, Los Angeles. “Sentia que não era muito compreendido onde estava, estava fechado num mundo onde não era necessariamente infeliz, mas também não era feliz, tinha que sair, viajar, conhecer de perto outras realidades e confrontar-me”, reflecte. Em L.A. tornou-se amigo de Barron Machat, da editora Hippos in Tanks, para onde gravaram muitos dos nomes que iriam tornar-se referência para si (Arca, Hype Williams, Dean Blunt, Inga Copeland, James Ferraro).

Depois, o ano passado, surgiu When Man Fails You, e em Outubro deste ano, Serpent Music, que foi sendo gravado entre viagens, em diferentes locais, ao longo dos últimos três anos. “Foi sendo feito em estúdios caseiros, desde 2013, quando vivia em Berlim e depois fui gravado também na Flórida, em Turim, ou quando viajava para visitar os meus pais e família no Tennessee. Mais tarde quando a editora Pan se aproximou de mim mostrando-se disponível para a sua edição gravei ainda mais música e tentei que existisse alguma consistência sonora final, até porque o processo havia sido caótico e fragmentado.”

É como se no final tivesse criado uma colagem a partir das mais diversas fracções, para completar um caleidoscópio onde caos e ordem andam sempre a par, compondo uma paisagem urbana capaz de reflectir um não menos desarrumado cosmos interior.

“Inicialmente tinha imaginado fazer um álbum de música soul, num sentido mais clássico, com canções um pouco confessionais”, admite ele, mas no final resultou em algo muito diferente, reflectindo o seu universo pessoal, mas de uma forma mais diluída, tocando as paranóias e ansiedades sociais de forma universal, num disco de experimentações com electrónica saturada, gravações de campo, vozes e ruídos ambientais.   

Ou seja, é um disco onde a intrigante e solitária jornada pessoal de Yves Tumor se confunde com o momento desordenado e caótico do mundo actual, devolvendo-nos qualquer coisa de vulnerabilidade, mas também de ansiedade. Um dos últimos sintomas dessa tensão tem origem na recente eleição presidencial de Donald Trump, que revelou um país dividido.

Nada que o tenha apanhado desprevenido. “Socialmente, economicamente ou politicamente não me surpreendeu a vitória de Trump. Venho do Sul, conheço bem a realidade das várias américas, e sentia que o consenso em torno de Clinton era artificial, ao mesmo tempo que o ‘Brexit’ havia sido um aviso sobre como a insatisfação das pessoas tolda o resto”, reflecte, acrescentando que esses sintomas de descontentamento não se circunscrevem ao seu país. “Há um mal-estar generalizado, embora aqui, com o infinito do Atlântico, tudo pareça sereno.”