Minto, logo existo
O Túnel de Pombos é um livro de memórias dispersas, textos que atravessam a vida de John le Carré. Este é o homem que se construiu na mentira, à procura da sua verdade enquanto se ri dela. "John le Carré não existe”, diz o seu biógrafo.
“Eu sou um mentiroso (…) nascido para a mentira, criado para ela, treinado para ela por um sector que mente para ganhar a vida, treinado nela como romancista. Como fabricador de ficções, invento versões de mim próprio, nunca a coisa real, se é que ela existe.” David Cornwell, autor de romances com o pseudónimo John le Carré, apresentou-se assim a uma dupla de detectives que contratou para descobrir factos que o ajudassem a escrever a sua autobiografia. A ideia era juntar factos e imaginação. “Deixarei a minha memória imaginativa à solta na página da esquerda e porei o vosso relato factual na página da direita, sem altercações nem enfeites. E dessa maneira os meus leitores verão por si mesmos até que ponto a memória de um escritor velho é a prostituta da sua imaginação.” Os detectives iriam atrás da história da sua infância e juventude de que o pai deixara um rasto mínimo e que, por sua vez, ele reinventara desde criança construindo para si uma identidade fantasiada. Os factos não foram descobertos e a autobiografia não seria escrita. O mais próximo dela é o livro de memórias O Túnel de Pombos, conjunto de episódios burlescos, nostálgicos, carregados de humor, ricos em detalhe e narrados apenas com recurso à memória. O discurso do escritor aos detectives é o melhor aviso aos leitores deste livro: quando se está perante John le Carré a verdade pode ser uma boa ficção ou vice-versa.
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“Eu sou um mentiroso (…) nascido para a mentira, criado para ela, treinado para ela por um sector que mente para ganhar a vida, treinado nela como romancista. Como fabricador de ficções, invento versões de mim próprio, nunca a coisa real, se é que ela existe.” David Cornwell, autor de romances com o pseudónimo John le Carré, apresentou-se assim a uma dupla de detectives que contratou para descobrir factos que o ajudassem a escrever a sua autobiografia. A ideia era juntar factos e imaginação. “Deixarei a minha memória imaginativa à solta na página da esquerda e porei o vosso relato factual na página da direita, sem altercações nem enfeites. E dessa maneira os meus leitores verão por si mesmos até que ponto a memória de um escritor velho é a prostituta da sua imaginação.” Os detectives iriam atrás da história da sua infância e juventude de que o pai deixara um rasto mínimo e que, por sua vez, ele reinventara desde criança construindo para si uma identidade fantasiada. Os factos não foram descobertos e a autobiografia não seria escrita. O mais próximo dela é o livro de memórias O Túnel de Pombos, conjunto de episódios burlescos, nostálgicos, carregados de humor, ricos em detalhe e narrados apenas com recurso à memória. O discurso do escritor aos detectives é o melhor aviso aos leitores deste livro: quando se está perante John le Carré a verdade pode ser uma boa ficção ou vice-versa.
Onde é que o enigma começa? Ou, como pergunta o biógrafo Adam Sisman, quem é John le Carré? “Claro que ‘John le Carré’ não existe. O nome é uma máscara para alguém chamado David Cornwell”, escreveu na introdução de John le Carré: the biography, o disfarce ao agente secreto que não quer ser confundido com o escritor. Faça-se a pergunta de outra forma: quem é David Cornwell? “Claramente um homem que colecciona talentos, que poderia ter feito uma bela carreira enquanto artista ou actor e que se tornou num dos autores com mais sucesso no mundo”, continua Sisman na biografia que resultou de 50 horas de entrevistas com o escritor, do acesso aos seus papéis pessoais, de conversas com familiares e amigos, da consulta de múltiplos arquivos, da leitura de correspondência. Não é uma biografia “autorizada” porque Le Carré se opôs ao uso do adjectivo. “Ele quis manter a distância”, refere Adam Sisman.
Não perdoar ao pai
A biografia saiu no Outono de 2015. Um ano depois John le Carré publica O Túnel de Pombos, Histórias da Minha Vida (D. Quixote). Sisman sabia do livro. “Trabalhei na biografia quatro anos e no fim ele começou a falar em escrever as memórias. Pedi-lhe para não o fazer antes de o meu ser publicado, respondeu que o melhor era despachar-me porque não viveria para sempre.” Le Carré cumpriu, mas Sisman não esconde o desapontamento perante o que classifica de “acto pouco amigável”. Manifestou isso num artigo no Guardian em Setembro. “John le Carré e eu trabalhámos quatro anos na sua biografia. Porque é que ele está a contar a sua própria história 12 meses depois”, questionava, ensaiando uma explicação, a do seu editor: “Ele está a tentar recuperar o controlo da agenda”. Ao Ípsilon, diz: “Vejo O Túnel de Pombos como uma série de histórias divertidas, que podem ou não ser verdade. É uma espécie de verdade emocional. Ele acredita no que está a escrever.”
Será? O Túnel de Pombos é um volume de textos cronologicamente dispersos, alguns vistos pelo autor como “incidentes isolados” que integram a sua vida enquanto espião ao serviço do MI5 e MI6 nos anos da Guerra Fria, e contemplam o princípio da escrita, o nascimento da personagem George Smiley, o encontro com figuras históricas como Margaret Thatcher ou Yasser Arafat, o testemunhar de momentos cruciais da história moderna. Na Alemanha, Rússia, Vietname ou Beirute. Ou a sua relação com os realizadores que foram adaptando aos seus romances ao cinema, o contacto com a alta sociedade londrina, e talvez o mais brilhante de todos, aquele onde descreve a relação com Robert Cornwell, que tratava por Ronnie - “vigarista, fantasista, preso ocasional e meu pai” -, alguém que descreve assim: “Era viciado em crises, viciado na teatralidade, um orador do púlpito desavergonhado que procurava as luzes da ribalta. Encantava e persuadia com as suas fantasias, via-se como o menino de ouro de Deus e deu cabo da vida de muitas pessoas.”
Na relação com o pai está a génese do que foi a vida e a arte de David Cornwell (n. 1931), ainda que ele, o filho, na sua intimidade enquanto David ou sob a capa de John le Carré, não lhe queira dar toda essa importância. “Foi uma infância muito complicada”, sublinha Adam Sisman. “Havia sempre gente famosa a entrar e a sair de casa, e a casa nunca era a mesma. O pai era muito promíscuo, tinha muitas mulheres diferentes. E tão depressa eram muito ricos como andavam a contar tostões. A mãe fugiu tinha David cinco anos por não aguentar a violência do marido. De vez em quando a polícia aparecia e o pai desaparecia. Ele e o irmão ficavam entregues aos avós paternos.” Se David não perdoa o pai, o seu coração gelou para a mãe. A retirada da sua vida sem uma explicação matou qualquer tipo de afecto que sentia ou pudesse vir a sentir por ela, mesmo quando a voltou a encontrar, aos 21 anos. Le Carré resume desta forma a herança que recebeu: “Recordo a dissimulação ao longo da infância e da adolescência e a necessidade de criar uma identidade para mim mesmo e de como, para o fazer, fui surripiar aos modos e ao estilo de vida dos meus pares e dos seus superiores, chegando até ao ponto de fingir que tinha uma vida doméstica estável, com pais reais e póneis.” Mentia para existir e ser aceite. E conclui: “Tudo isto me tornou indubitavelmente um recruta ideal para a bandeira do secretismo”.
O primeiro espião
É ai, na infância, que nasce uma das primeiras mentiras. Foi contra a culpa. “Neste país, sobretudo na geração de David, o que o pai de cada um fazia durante a II Guerra Mundial era assunto de extrema importância na escola. Esse conflito é modelar da identidade britânica, a luta contra a Alemanha nazi. Todos tinham os pais fora a lutar. O pai de David tinha o papel mais desprezível: ganhava dinheiro com a guerra. Ele sentia muita vergonha e inventou que Ronnie era um agente secreto a espiar os alemães. Uma mentira compreensível e o princípio do fabrico de muitas histórias”, conta-nos Adam Sisman, que remete para a afirmação de Le Carré, ideia presente na biografia e que surge assim em O Túnel de Pombos: “Graham Greene diz-nos que a infância é o saldo credor do escritor. Por essa medida, pelo menos, eu nasci milionário”.
Na vida de David Cornwell havia muita matéria sobre a qual romancear e manter secretismo. Teve consciência disso muito cedo ao fazer do próprio pai o seu primeiro espião perfeito. Publicado originalmente na revista New Yorker, em 2002, o texto que agora aparece nestas memórias sobre o pai – Filho do Pai do Autor - conta, com recurso a boa dose de ironia e zanga, o molde de uma personalidade que se desenvolveu criativa para poder sobreviver. Enquanto criança que quer ser aceite, como professor em Eton, funcionário no MI5 e no MI6, escritor de romances de espionagem. Era espião quando começou a escrever e a publicar sob pseudónimo de John le Carré. Além do nome não encontrou qualquer incompatibilidade entre as duas funções. “A espionagem e a escrita de romances foram feitas uma para a outra. Ambas pedem um olhar atento à transgressão humana e às muitas vias para a traição”, confessa, sublinhando que nunca encontrou melhor editor do que os velhos espiões do MI5. “A instrução mais rigorosa sobre como escrever em prosa que alguma vez recebi não a obtive de um professor do colégio ou lente universitário, muito menos de algum curso de escrita criativa. Veio dos agentes seniores com estudos clássico no último andar da sede do MI5 (…) que se iam aos meus relatórios com um pedantismo deleitado, manifestando desprezo pelas minhas orações incompletas e pelos meus advérbios desnecessários e riscando as margens da minha prosa chã com comentários como: redundante – omita – justifique – vago – quer realmente dizer isto?”
Não esclarece, no entanto, escolha do nome com que assinaria 23 romances em mais de 50 anos de vida literária, onde se destacam títulos como O Espião que Saiu do Frio, A Toupeira, A Rapariga do Tambor, o autobiográfico Um Espião Perfeito, A Casa da Rússia ou O Alfaiate do Panamá. Um conjunto de obra que na opinião de Adam Sisman o coloca, nos seus melhores momentos, ao nível de Charles Dickens, “pela qualidade de escrita, conhecimento da natureza humana e das suas motivações, atenção aos detalhes de classe, poder de observação. Além disso, distingue-se pelo modo como tratou os conflitos morais de quem desempenha funções nos Serviços Secretos durante o período da Guerra Fria ou como fala da busca dos ingleses por uma nova identidade, pós-colonial, de império perdido. Capta e transmite o espírito de um tempo”. Por isso, perante a pergunta da praxe “quem é melhor escritor de espionagem do pós-guerra, Ian Fleming ou John le Carré?”, Sisman não tem dúvidas: “Esta semana estive num debate em Londres onde se discutia isso e ficou clara a preferência por Le Carré.
Foi essa admiração e o secretismo, ou “enigma” à volta da figura de John le Carré/David Cornwell que o fez avançar para a biografia depois do escritor e ex-jornalista da BBC, Robert Harris, abandonar o projecto. “Escrevi-lhe em 2010 a dizer que gostava de fazer a sua biografia e respondeu a explicar que havia alguns problemas. Tivemos uma boa conversa e fizemos um acordo. Ele não queria ter influência no que eu escrevesse, gostava de ler antes de qualquer pessoa, de poder dizer o que estava errado e pedia que respeitasse os sentimentos das pessoas que estivessem vivas; tudo completamente razoável”, conta Sisman a partir da sua casa em Bristol onde escreveu a biografia que considera um contraponto ao livro de Le Carré. “O dele segue a memória, o meu suspeita de tudo, até dos factos”. Na introdução de O Túnel de Pombos, Le Carré esclarece que “estas são histórias verdadeiras, contadas de memória”, distingue entre facto e criatividade, e afirma: “Para o escritor de obras criativas, os factos são a matéria-prima bruta, não o seu capataz, mas o seu sentimento, e a sua tarefa é fazê-los cantar. A verdade real reside, se reside algures, não nos factos, mas nos matizes.”
Esse território de nuances, onde verdade e ficção se contaminam, é o do livro e o que tem definido a existência do seu autor, um contador de histórias sempre a aperfeiçoar, a acrescentar detalhes sedutores, até as transformar noutra coisa. “Desde criança que ele constrói a sua memória, ficciona-a, a ponto de acreditar que ela é verdadeira. Todos fazemos um pouco isso. Ele levou isso mais longe”, diz Sisman que também vai mais longe, afirmando que Le Carré/Cornwell “tem uma relação complicada com a verdade, como ele admite, e uma espécie de dor. Podemos pensar na sua identidade como uma quase construção. É como as bonecas russas, em que se tira uma e outra e depois não há nada no centro. Ele receia que não haja nada no seu centro. É uma pessoa complexa e brilhante, muito talentosa, engraçada, esperta, charmosa, um homem muito bonito que atraiu muitas mulheres. Mas tem esta dor. Isso surpreendeu-me. Quando o vemos na televisão ou a fazer uma leitura vemos um homem sofisticado, famoso, seguro, bem-sucedido.”
A história cada vez melhor contada
Durante quatro anos, Sisman visitou David – é assim que o trata – na sua casa de Hampstead, em Londres. “Chegava pelas onze da manhã e umas horas depois ele sugeria: ‘e se almoçássemos?’ Íamos a um restaurante nos arredores, a conversa continuava. Voltávamos e pelas quatro e meia, cinco: ‘e se tomássemos uma bebida?’. Ele trazia um Armagnac, um whisky ou um Cavados, e depois de quatro ou cinco desses já não me sentia em condições de fazer perguntas sensatas. Ele tem uma capacidade prodigiosa de aguentar bebida, pode beber muito, muito mais do que eu. Gostava de estar com ele. Ríamos muitas vezes, mas havia também uma tensão.” Porquê? “Eu confrontava-o com o passado e muitas vezes detectava imprecisões. Era o meu trabalho.” Conta ainda como Le Carré gostava de o apanhar desprevenido e sem reacção, antecipando a resposta a uma pergunta que ainda não lhe fora dirigida ou usando a arma do humor. “Já perto de terminar o livro, fui visitá-lo e ele disse-me que estava a escrever um novo romance. Perguntei-lhe sobre o que era e respondeu que era sobre um velho espião reformado que recebe visitas de um homem mais novo que lhe faz perguntas acerca do passado. Respondi-lhe: ‘isso soa-me familiar’, e perguntei se esse homem era pouco subtil, se tendia a perceber tudo mal e estava sempre a desviar-se do que interessa?” Sisman estava perante a sua própria caricatura traçada por um mestre da imitação. Le Carré não estava a escrever esse livro. Passava por um bloqueio que terá sido resolvido com O Túnel de Pombos, título que remete para um casino em Monte Carlo, onde havia uma linha de tiro aos pombos que saíam por um túnel até ao céu do Mediterrâneo, como conta no prefácio.
Lidos biografia e memórias, um não substitui o outro. Mas com um e com o outro percebe-se que John le Carré possa ter sentido desconforto com o livro de Sisman. “Deve ser muito desagradável ter alguém a escrever sobre nós em vida”, argumenta o biógrafo. Apesar de o acordo ter sido respeitado, o seu retrato tem traços do pai. Mulherengo, capaz de seduzir pela palavra, com uma “relação difícil com a verdade”. O livro de Sisman quer a precisão do detalhe; o de Le Carré é solto, na técnica do exímio contador de histórias que se olha com auto-ironia. Na vida pessoal ou enquanto peão na história do seu tempo. Deixou de ser espião quando o sucesso do seu terceiro romance, O Espião que Saiu do Frio (original de 1963), lhe permitiu viver da escrita. Tinha 32 anos, três filhos, um divórcio e um pai que de vez em quando lhe ligava para que o livrasse de apuros. Havia uma diferença entre os dois. Havia? Agora, 85 anos, dois casamentos, quatro filhos, Le Carré coloca-se perante esse dilema. “Haverá realmente uma grande diferença (…) entre o homem que se senta à secretária e imagina esquemas na página em branco (eu) e o homem que veste uma camisa lavada todas as manhãs e, sem nada no bolso a não ser a sua imaginação, se põe em marcha para enganar as suas vítimas (Ronnie)?”
É o seu dilema pessoal sobre o qual quer ter as rédeas. “O guionista da adaptação televisiva do seu romance autobiográfico Um Espião Perfeito disse que quando o David está a falar sobre o pai não fala sobre a pessoa real, mas da personagem Rick Pym, o pai corrupto, ou seja, fala da recriação ficcional do próprio pai. Ela substitui o pai na sua imaginação. Ele tem uma imaginação prodigiosa”, justifica Adam Sisman. Estará David Cornwell a procurar a sua verdade no pai ficcionado?
A mentira, no sentido de engano, encenação, efabulação, fantasia, construção literária, cresce e com ela o enigma Le Carré. Pede-se a Sisman um exemplo de uma contradição entre a sua biografia e as memórias, ou seja, aponte uma “mentira”. Página 236 de O Túnel de Pombos. David tem 16 anos e vai à embaixada do Panamá em Paris a pedido do pai para cobrar 500 dólares ao embaixador, um conde. “A porta da rua da casa elegante foi aberta pela mulher mais desejável que eu jamais tinha visto” Era a mulher do embaixador que entretanto se juntou e acabaram os três a jantar num restaurante. Os diálogos e a descrição estendem-se por seis páginas. “Na minha recordação, é um local minúsculo (…) Durante o jantar, enquanto o conde falava sobre algo mais agradável, a condessa descalçou o sapato e acariciou-me a perna com o dedo do pé com meias. Na minúscula pista de dança, cantou-me Dark Eyes apertando-me a si e mordiscando-me o lóbulo da orelha (…) e o conde assistia àquilo indulgentemente. Ao voltarmos para casa, o conde decidiu que estávamos prontos pra ir para a cama. A condessa, apertando-me a mão, secundou a moção.”
Não foi assim?, pergunta-se a Sisman. “É uma história completamente inventada”, garante. Porquê? “Porque ele estava lá com o irmão. Mas quando ele conta esta história quem quer saber da minha?”