Histórias morais de redenção e culpa, à medida de actores mais interessados em dúvidas do que em heroísmos
No cinema, o realismo moral de John le Carré fez sempre contrapeso ao espectáculo technicolor das grandes aventuras de espionagem. Histórias morais de redenção e culpa, à medida de actores mais interessados em dúvidas do que em heroísmos
Comecemos por uma ironia que talvez não desagradasse a John le Carré. Duas das criações mais influentes da cultura popular do pós-Segunda Guerra Mundial pertencem a um outro mundo que já não existe e a um país que acreditava ainda poder recuperar o estatuto que outrora tivera. De um lado, a Coroa britânica e a sua ideia vitoriana-eduardiana de civilização ordeira que criou o chamado heritage cinema (que se mantém hoje, quase intocado, como o prova Downton Abbey). Do outro, James Bond, o agente secreto com ordem para matar, ícone do homem de acção criado pelo romancista Ian Fleming.
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Comecemos por uma ironia que talvez não desagradasse a John le Carré. Duas das criações mais influentes da cultura popular do pós-Segunda Guerra Mundial pertencem a um outro mundo que já não existe e a um país que acreditava ainda poder recuperar o estatuto que outrora tivera. De um lado, a Coroa britânica e a sua ideia vitoriana-eduardiana de civilização ordeira que criou o chamado heritage cinema (que se mantém hoje, quase intocado, como o prova Downton Abbey). Do outro, James Bond, o agente secreto com ordem para matar, ícone do homem de acção criado pelo romancista Ian Fleming.
O impacto de John le Carré, na literatura tal como no cinema, não teria sido o mesmo se não tivesse havido Bond e se os romances inspirados na própria experiência de Le Carré nos serviços secretos britânicos não oferecessem um contraponto ao heroísmo escapista da criação de Fleming (no cinema, porque nos livros a coisa fiava mais fino). As personagens do escritor moviam-se nos bastidores, como uma espécie de “exército das sombras” (para usar a referência Melvilliana), meras peças num tabuleiro geopolítico que os ultrapassava. O reverso da medalha do technicolor espectacular e panorâmico de 007, mesmo que a simultaneidade fosse mais circunstancial do que procurada: o arranque da série Bond no cinema data de 1962, Le Carré publicou o primeiro romance em 1961 mas O Espião que Veio do Frio, o livro que marcou a sua “explosão” pública, é de 1963. E a sua versão cinematográfica, dirigida por Martin Ritt em 1965, era, programaticamente, a preto e branco. Como convinha a uma história muito mais ambígua, e aos dramas pessoais, humanos, morais que se tornariam na marca registada dos romances de espionagem de Le Carré. Pequenas histórias apanhadas no meio da Grande História, temas perfeitos para o questionamento que o pós-Segunda Guerra Mundial trouxera ao cinema. Bond podia ser o herói que sonhávamos ser, mas Le Carré falava de quem éramos realmente.
Também por isso, Le Carré era talhado à medida dos actores que gostavam de esmiuçar uma personagem, de a compor paciente e detalhadamente, e é por isso que, se Bond era maior que um actor, os espiões do Circo britânico eram prendas para os seus actores. Falar de George Smiley, a personagem recorrente dos livros de Le Carré, é falar de Alec Guinness, imortal nas duas séries televisivas que a BBC adaptou de A Toupeira (1979) e A Gente de Smiley (1982). Gary Oldman fez-lhe também justiça na menos interessante mas ainda assim sólida versão para cinema de Tomas Alfredson em 2011, e James Mason em Duas Plateias para a Morte de Sidney Lumet, em 1967 (mesmo que Smiley aparecesse aí com outro nome); mas foi Guinness que ficou na história. Logo a seguir: Richard Burton no Espião que Veio do Frio, Pierce Brosnan no Alfaiate do Panamá de John Boorman (2001), Ralph Fiennes no Fiel Jardineiro de Fernando Meirelles (2005). E, sobretudo, Philip Seymour Hoffman, no seu último papel, em O Homem Mais Procurado de Anton Corbijn (2014), que reencontrava no seu Günther Bachmann, espião em busca de redenção, a medida exacta de desencanto e cansaço que Guinness soubera dar a Smiley.
Redenção parece ser uma palavra que reencontramos constantemente nos filmes adaptados de Le Carré. Redenção implica sempre culpa, central ao mundo desapaixonado, brutalmente cerebral do Circo, onde a vida humana é sempre medida e contrapesada por um valor puramente funcional. Todos os filmes adaptados de obras de Le Carré jogam com a tentativa de compensar ou redimir um erro de julgamento, de tentar manter um grama que seja de humanidade pelo meio do tabuleiro de xadrez onde tudo decorre. Isso liga-se com outra ideia recorrente (esta, é certo, muito Hitchcockiana): a de atirar “amadores”, gente “normal”, para o meio desse xadrez geopolítico — como em A Casa da Rússia (1990, que Fred Schepisi veio em parte filmar a Portugal), O Fiel Jardineiro, A Rapariga do Tambor (1984) ou o mais recente Um Traidor dos Nossos (2015). (O que teria Hitchcock, que tanto explorou essa ideia do inocente apanhado num turbilhão, feito com Le Carré?)
O cinema nunca se desinteressou do escritor britânico, apesar de — como o crítico Terrence Rafferty escrevia no New York Times em 2011 — os seus livros não serem candidatos evidentes às necessidades lineares de um filme de duas horas, devido às suas construções elípticas, cheias de avanços e recuos, de flashbacks e memórias. É por isso que Rafferty defendia ser na televisão que o escritor encontrava a sua “tradução” natural, considerando as duas séries da BBC como exemplares (e a recente adaptação televisiva de O Gerente da Noite com Tom Hiddleston e Hugh Laurie também teve notas mais elevadas que muitos dos filmes).
Mas é, também, por isso que voltamos à ironia — e esta também não desagradará, temos certeza, a Le Carré: é que o escritor não teve de mudar nada no seu olhar para continuar a fazer sentido no século XXI. Já James Bond abandonou há muito a pose do herói de acção puro e duro para absorver todas as dúvidas que John le Carré trouxe ao de cima. Hoje, 007 é impossível sem pensarmos também em George Smiley.