Frederico Lourenço: Prémio Pessoa para o tradutor de Homero e da Bíblia

A épica tradução a solo da Bíblia, a partir do grego antigo, foi o pretexto mais próximo para a atribuição do Prémio Pessoa a Frederico Lourenço, mas o tradutor de Homero ou Eurípedes é também ficcionista, ensaísta e poeta.

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Frederico Lourenço apresenta uma "rara erudição", segundo o júri do prémio Miguel Manso/Arquivo

Depois de ter traduzido a Odisseia e a Ilíada, foi provavelmente a colossal empreitada que agora tem em mãos – a tradução, a partir do grego antigo, da chamada Bíblia Grega, ou dos Setenta – que valeu a Frederico Lourenço o prémio Pessoa, promovido pelo semanário Expresso, cujo 30.º vencedor foi anunciado esta sexta-feira no Palácio de Seteais, em Sintra, por Francisco Pinto Balsemão, que sublinhou a "rara erudição" do escritor, tradutor e professor universitário.

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Depois de ter traduzido a Odisseia e a Ilíada, foi provavelmente a colossal empreitada que agora tem em mãos – a tradução, a partir do grego antigo, da chamada Bíblia Grega, ou dos Setenta – que valeu a Frederico Lourenço o prémio Pessoa, promovido pelo semanário Expresso, cujo 30.º vencedor foi anunciado esta sexta-feira no Palácio de Seteais, em Sintra, por Francisco Pinto Balsemão, que sublinhou a "rara erudição" do escritor, tradutor e professor universitário.

O primeiro (na cronologia de publicação) dos seis volumes desta sua tradução, que inclui os evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, saiu recentemente na Quetzal, que deverá lançar o segundo e o terceiro ainda em 2017, e que anuncia este projecto editorial, que só deverá concluir-se em 2020, como “a mais completa versão da Bíblia em língua portuguesa”.

 “Penso que a saída do primeiro volume da tradução da Bíblia terá sugestionado o júri para pensar em mim, mas se calhar este prémio tem também que ver com as minhas traduções do grego antigo, e o reconhecimento dessa missão que tenho tido de dar a conhecer um bocadinho aos leitores portugueses a literatura em língua grega", admitiu ao PÚBLICO Frederico Lourenço.

De facto, o júri do prémio – que integrou, além de Balsemão, António Domingues, António Barreto, Clara Ferreira Alves, Diogo Lucena, José Luís Porfírio, Maria Manuel Mota, Maria de Sousa, Pedro Norton, Rui Magalhães Baião e Viriato Soromenho-Marques – destaca a “centralidade dos estudos clássicos” na obra de Lourenço, faz referência expressa ao “rigor” com que traduziu “as obras fundamentais de Homero”, e elege como o seu “traço mais singular” o “modo como ao longo de quase duas décadas tem vindo a oferecer à língua portuguesa as grandes obras da literatura clássica”, lembra também a diversidade e eclectismo dos seus campos de interesse, nos quais se incluem “o romance, a poesia, o teatro, o ensaio, os estudos bizantinos, a germanística e a história da dança”.

Mas o próprio Frederico Lourenço reconhece que “o grande protagonismo vai hoje para a Bíblia", referindo-se também à sua vida pessoal, já que este trabalho épico o vai ocupar, se tudo correr como previsto, até 2020. E para lá da sua dimensão, o projecto distingue-se também das suas traduções dos poemas épicos atribuídos a Homero pela profusão, dimensão e detalhe das notas explicativas. "Traduzi a Odisseia e a Ilíada como os poemas que são, mas na Bíblia há tanta coisa que é preciso explicar, tantas opções de tradução que temos de justificar, que acaba por ser um trabalho mais universitário", explica.

Afirmando-se "muito sensibilizado e muito honrado" por ter recebido o Prémio Pessoa, Frederico Lourenço diz que se trata de "um prémio muito especial". E se ao recebê-lo se "pode sentir que se fez um bom trabalho", é uma distinção que "traz também a responsabilidade de se fazer melhor, de se tentar ser merecedor dele".

Um dos jurados, o sociólogo António Barreto notou, em declarações à Lusa, que as suas traduções da Odisseia e da Ilíada, “um trabalho académico muito sério, foram muito procuradas pelo público, levando os grandes clássicos da literatura universal aos tops de vendas". Se Frederico Lourenço não é um exemplar típico do helenista – pense-se, por exemplo, na notável Maria Helena da Rocha Pereira –, deve-o não apenas à diversidade dos seus interesses e competências, mas também a um assumido desejo de chegar ao grande público. E como observa Barreto, e as sucessivas reedições das suas traduções, romances e livros de ensaios atestam, tem conseguido cumprir bastante satisfatoriamente o seu desígnio.

O escritor e editor Francisco José Viegas, responsável pelo lançamento desta Bíblia em língua portuguesa na Quetzal, afirmou ao PÚBLICO que a sua reacção ao prémio é de "grande alegria", por duas ordens de razões. "A um nível pessoal, porque sou amigo do Frederico Lourenço, e sinto-me comovido porque é uma pessoa maravilhosa; e como editor é uma grande felicidade, porque é o reconhecimento de um trabalho de anos, de divulgação das letras clássicas e da tradução da sensibilidade clássica para a nossa língua." 

A bibliografia de Lourenço, que antes desta colaboração com a Quetzal, foi essencialmente editada pela Cotovia, inclui a trilogia ficcional Pode um Desejo Imenso, iniciada em 2002 com o romance do mesmo nome, uma ficção em ambiente académico, cujo protagonista é um professor universitário que aprecia com o mesmo entusiasmo a poesia de Camões e a beleza do seu aluno Filipe, o volume de contos A Formosa Pintura do Mundo (2005), os livros autobiográficos Amar não Acaba (2004) e A Máquina do Arcanjo (2006), as já referidas traduções da Odisseia (2003) e da Ilíada (2005), uma antologia da Poesia Grega de Álcman a Teócrito (2006), livros de ensaios como Novos Ensaios Helénicos e Alemães (2008), Estética da Dança Clássica (2014) ou o recente O Livro Aberto: Leituras da Bíblia (2015), o volume de poemas Santo Asinha e outros Poemas (2010), a compilação de crónicas O Lugar Supraceleste e outras Meditações (2015) e, entre vários outros títulos, coisas tão diversas como uma recriação poética do poema dramático Don Carlos, de Friedrich Schiller, ou textos sobre cineastas como Frank Capra, Ernst Lubitsch ou Howard Hawks, estes publicados pela Cinemateca Portuguesa, cujo director histórico, João Bénard da Costa, era seu padrinho.

Pela sua reconhecida erudição, pela amplitude de interesses e pelo gosto de traduzir e divulgar (e pela dimensão e complexidade das tarefas que se impõe neste domínio), pode talvez inscrever-se Frederico Lourenço numa linhagem de “homens de letras” cujos precedentes mais próximos e mais óbvios na cultura portuguesa seriam Jorge de Sena e Vasco Graça Moura, mesmo se a sua obra de criação original não é ainda comparável à de nenhum dos dois. Mas no rol das coincidências, é curioso observar que, tal como Graça Moura se aventurou a adaptar Os Lusíadas para leitores em idade escolar, Lourenço fez o mesmo com a Odisseia e a Ilíada.

“É uma grande lisonja”, comenta o autor, quando confrontado com esta hipótese de genealogia. “Tenho muita admiração pelo Vasco Graça Moura, e também pelo ensaísta puro e duro, mas as suas traduções são de uma perfeição literária extraordinária, e acho que não tenho esse dom, que tento compensar com outras mais-valias que trago para a tradução dos textos antigos”, diz, dando como exemplo esta tradução da Bíblia, que está a tentar que resulte “tão próxima quanto possível do texto original”, e que procura contextualizar com “comentários e explicações bastante pormenorizadas”.    

Filho do filósofo, escritor e tradutor M. S. Lourenço (1936-2009), professor catedrático de Lógica e Filosofia da Matemática – e autor de uma das mais singulares e secretas obras poéticas portuguesas da segunda metade do século XX –, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963. Obteve a sua Licenciatura e o seu Doutoramento em Línguas e Literaturas Clássicas na Universidade de Lisboa, tendo leccionado também nessa Universidade, entre 1988 e 2009, antes de assumir o lugar de professor associado da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

Com o patrono do prémio que agora lhe foi atribuído, Frederico Lourenço partilha o bilinguismo inglês-português, tendo vivido até aos dez anos em Inglaterra e feito a primária em Oxford, onde o pai era leitor. Fluente também em alemão, a opção pelos estudos clássicos não era um destino particularmente óbvio. “Acaba por ser estranho, mas tinha uma curiosidade tão grande em relação ao grego que acabei por dar prioridade ao curso de grego e latim” explica. E a verdade é que o inglês e alemão que aprendeu estão agora a dar-lhe muito jeito: “Há muita coisa em inglês e alemão, sobretudo do século XIX, que é preciso ler para se perceber a evolução dos estudos históricos e críticos da Bíblia”. 

Com Vítor Belanciano