Os peixinhos do governo no lago dos tubarões
Ainda assim, Mário Centeno consegue a proeza de acertar falhando estrondosamente. A escolha de Paulo Macedo para a CGD prova que Centeno é melhor headhunter que ministro das Finanças.
Há uns anos, a referência às tradições judaico-cristãs no preâmbulo do projeto de Constituição Europeia causou uma pequena insurreição nos ciclos bem pensantes europeus. A referência a esse traço da identidade europeia, tal como o projeto de Constituição, acabaria por cair em nome do sacrossanto princípio da laicidade do Estado. Quase uma década depois, já não estamos só a deixar de inscrever os valores nos nossos textos políticos. Estamos a esquecê-los. Os princípios judaico-cristãos que nos moldaram, como povo e nação, estão em erosão acelerada. Passamos da idolatria irracional à crueldade da crucificação num piscar de olhos. Especialmente no palco político.
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Há uns anos, a referência às tradições judaico-cristãs no preâmbulo do projeto de Constituição Europeia causou uma pequena insurreição nos ciclos bem pensantes europeus. A referência a esse traço da identidade europeia, tal como o projeto de Constituição, acabaria por cair em nome do sacrossanto princípio da laicidade do Estado. Quase uma década depois, já não estamos só a deixar de inscrever os valores nos nossos textos políticos. Estamos a esquecê-los. Os princípios judaico-cristãos que nos moldaram, como povo e nação, estão em erosão acelerada. Passamos da idolatria irracional à crueldade da crucificação num piscar de olhos. Especialmente no palco político.
Com a maior das normalidades, muita gente competente é sacrificada pelos políticos no altar da opinião pública para não contaminar a popularidade e as sondagens ou para satisfazer os opinion makers da situação.
Tenho pouca apetência para o politicamente correto. E provavelmente estou desalinhado com a maioria dos meus companheiros do PSD. Mas não me conformo com a novela mais degradante e provavelmente mais dispendiosa a que o país já assistiu: a destruição da CGD.
Mais do que a crítica política, são os acontecimentos que nos permitem fazer sinalizações de caráter e competência de quem nos governa. E, nesse particular, a CGD foi reveladora das qualidades (e faltas dela) tanto do primeiro-ministro como do sempre inefável escudeiro Mário Centeno.
A história começa há uns meses. Pouco depois de aterrar no Terreiro do Paço, o prepotente ministro Centeno maltrata a anterior administração da Caixa. Acusa-a de não ter independência política na gestão do banco público. [Enquanto membro do governo mais curto da nossa democracia, conheci José de Matos e tenho dele a imagem de um homem completamente imune a pressões ou influências; pelo contrário, sempre testemunhei um comportamento independente e altamente profissional por parte do Presidente da CGD]. Mais tarde, Centeno é obrigado a morder a língua. Com um processo de recapitalização em curso, mas sem ter capacidade para escolher uma administração da sua preferência, o ministro das Finanças obriga todos os elementos da equipa de José de Matos a prolongarem de forma incompreensível os seus mandatos.
Centeno precisou de sete meses para descobrir uma nova equipa que corporizasse o tal ideal de administração da CGD profissional e independente. Encontrou António Domingues. Homem com carreira e provas dadas. De uma seriedade à prova de bala. Como gestor de carreira, e não político de carreira, Domingues colocou um conjunto de condições para aceitar o desafio. É assim que as coisas se fazem no mundo que não vive só do Estado e para o Estado.
Domingues definiu condições salariais para gerir o maior banco português. Pediu liberdade para constituir a sua equipa – e escolheu das melhores que tenho visto na banca nacional. Exigiu uma recapitalização apropriada, que garantisse o músculo e as ferramentas para a CGD funcionar como um verdadeiro motor da economia nacional, apoiando as empresas, os projetos e os nossos empreendedores. Por último, quis dispensa das obrigações decorrentes do exercício de um cargo público ou de gestor publico. Esta é a questão polémica. E a que acendeu a fogueira dos populismos e da demagogia.
Pergunto: é legítimo, ou não, que um gestor privado coloque as condições que entender para aceitar um tão grande desafio? É. Embora deva dizer que não aceitaria a condição de dispensa das obrigações de gestor público. E tê-lo-ia deixado claro no convite inicial.
E é legítimo que um governo que aceita essas condições e as acorda por escrito, todas elas e não apenas uma ou parte, depois as renegue? Não. Mas foi isso que Costa e Centeno fizeram: disseram o tido por não dito, roeram a corda e, pior do que isso, colocaram em Domingues e na sua administração de gente séria e competente, o odioso e o preconceito que os populistas alimentam contra os banqueiros e os empresários. Costa e Centeno quiseram fazer o papel de peixinhos cor-de-rosa no lago dos tubarões da alta finança.
É um papel triste que só a falta de estatura política e ética justifica. Com governantes assim é fácil perceber porque é que Portugal não converge com a Europa.
Ainda assim, Mário Centeno consegue a proeza de acertar falhando estrondosamente. A escolha de Paulo Macedo para a CGD prova que Centeno é melhor headhunter que ministro das Finanças. Certamente que o país não estaria onde está hoje.
Última nota para Paulo Macedo: é um homem sério, honrado e de uma resiliência e capacidade de trabalho ímpares. Trata-se do homem certo para a CGD nesta altura tão conturbada da sua vida.
Contudo, temo que a dimensão humana e profissional de Paulo Macedo não seja acompanhada pelos nossos governantes, o que pode pôr em causa os resultados que poderia alcançar com outros protagonistas.
Para este governo vale tudo. Tudo para conquistar mais um voto, um eleitor, um simpatizante um apoiante. Até fazer o papel de peixinho se isso permitir sacudir a água do capote.