Batalha entre habitação e arrendamento turístico chega ao STJ
Juristas sustentam que acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa pode abrir “via verde” para a contestação ao alojamento local. Relação do Porto está dentro do entendimento que tem prevalecido.
Dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa e do Porto têm interpretações diferentes sobre a legitimidade da prática de arrendamento turístico em prédios destinados a habitação, cabendo agora ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidir que direitos devem prevalecer.
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Dois acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa e do Porto têm interpretações diferentes sobre a legitimidade da prática de arrendamento turístico em prédios destinados a habitação, cabendo agora ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidir que direitos devem prevalecer.
Tal como o PÚBLICO noticiou na edição desta quarta-feira, o acórdão da Relação de Lisboa sustenta que não pode ser dado a uma fracção autónomo utilização diferente para a que estava destinada. Esta quarta-feira ficou a saber-se da existência de outro acórdão do Tribunal da Relação do Porto, que não vê conflitualidade na prática da actividade de alojamento de curta duração em prédio de habitação.
A decisão de Lisboa foi objecto de recurso para o STJ, fundamentado “em contradição de julgados [decisões contraditórias], estando a aguardar despacho de admissão”, disse ao PÚBLICO, Gonçalo Almeida Costa, advogado da CCA Ontier, que representa a proprietária que quer continuar a exercer a actividade de arrendamento para turistas num prédio de Lisboa. No caso do acórdão do Porto é provável que também tenha sido objecto de recurso para o STJ, mas o PÚBLICO não conseguiu confirmar oficialmente a informação.
A validade dos dois entendimentos será feita pelo STJ, que ainda assim pode ter entendimentos diferentes, como acontece com muita frequência, o que poderá tornar necessário o recurso à uniformização de jurisprudência. Isto é, em face de divergência de entendimentos pode recorrer-se para “o pleno das secções”, para que se proceda à uniformização de decisões do tribunal. Só depois disto é que a decisão passará a ser aplicada em todos os processos idênticos.
As duas decisões correspondem a recursos de providências cautelares, no num caso foi aceite pela primeira instância (Porto), e na segunda foi recusada (Lisboa). Para os juristas ouvidos pelo PÚBLICO, é o acórdão da capital que vai contra a corrente.
Luís Filipe Carvalho, sócio da ABBC, entende que a confirmar-se o acórdão de Lisboa “está aberto um precedente jurisprudencial que dará argumentos para os condóminos poderem combater o alojamento local licenciado”. O jurista Fernandes Martins também destaca o facto do acórdão de Lisboa “ir contra o que tem sido o entendimento geral, incluindo das próprias entidades públicas, que é o de ser possível o exercício de actividade comercial em prédio de habitação permanente”. Sem querer desvalorizar o do Porto, o assessor jurídico da Associação dos Inquilinos e Condóminos do Norte de Portugal defende que mantém o entendimento que tem prevalecido.
Para este jurista, a decisão da Relação de Lisboa tem a vantagem de apertar muitos proprietários para os poderes que a assembleia de condóminos pode ter para autorizar ou não a utilização que uma ou mais fracções possam ser afectas ao arrendamento temporário, possibilidade que muitos proprietários desconheciam”.
O recurso aos tribunais parece inevitável, a menos que o legislador altere a forma de licenciamento do arrendamento local, passando a exigir, como requisito fundamental, a não oposição dos condóminos para que esta actividade seja exercida em fracções afectas a habitação. Luís Filipe Carvalho considera, no entanto, que se “o acórdão de Lisboa se tornar definitivo se estará em via verde para que os condóminos venham a recorrer a tribunal peticionando que seja proibido o alojamento local licenciado”.
Tiago Mendonça de Castro, da PLMJ, sustenta quer as decisões da assembleia de condóminos quer a recusa de aceitação dessas decisões por parte de algum condómino poderá ter de ser dirimida nos tribunais.
“No que respeita à utilização de uma casa para alojamento temporário de pessoas (turistas ou não turistas, tanto faz), o condómino que se vir confrontado com uma deliberação da assembleia de condóminos determinando que ele não o pode fazer com a sua fracção pode impugnar judicialmente essa deliberação, não acatar a deliberação do condomínio (por considerar, bem ou mal, que a mesma não é valida) e esperar que seja o próprio condomínio a reagir e a interpor uma acção em Tribunal”, explicou Tiago Mendonça de Castro.
Argumentos em confronto
O acórdão do colectivo de juízes do Porto concluiu que “no caso em apreço não se mostram demonstrados factos necessários para proceder os requisitos de que dependia o decretamento da providência cautelar (…)”. Mas também admite várias dúvidas: “ (…) embora admitindo dúvidas e aceitando que novos argumentos possam surgir, somos levados a concluir que resultando da constituição da propriedade horizontal que a função se destina à habitação mas não resultando que isso exclua o alojamento temporário de turistas, a circunstância de esse alojamento ser prestado em regime de prestação de serviços não é obstante para afirmar que a utilização é diversa e incompatível com a utilização para aquele destino autorizado”.
Ao contrário da fundamentação de Lisboa, segundo a qual “se um condómino dá à sua fracção um uso diverso do fim a que, segundo o título constitutivo da propriedade horizontal, ela é destinada, ou seja, se ele infringe a proibição contida no artigo 1422º (…) do Código Civil, o único remédio para essa afectação é a reconstituição natural (afectação da fracção em causa ao fim a que ela estava destinada) ”, a do porto admite que “o alojamento temporário de turistas não deferirá em regra da utilização similar à que seria feita pelo proprietário ou por um arrendatário para habitação do respectivo agregado familiar”.