Um burro no telhado
O primeiro-ministro italiano demissionário, Matteo Renzi, permitiu, com a questão referendária que levantou, que “vozes de burro” ficassem mais perto do céu.
A expressão latina “Asinus in tegulis” vem no Satyricon, a obra clássica de Petrónio. Significa literalmente “um burro no telhado” e tem o duplo sentido de “coisa nunca vista” e de um “ignorante que subiu alto”. Foi essa a expressão que terá ocorrido a muita gente quando, contrariando as melhores previsões, Donald Trump foi eleito Presidente da nação americana. A chegada ao topo do poder de um candidato sem qualquer experiência política é, de facto, algo nunca visto. Por outro lado, são conhecidas as suas limitações quanto ao conhecimento do mundo: por exemplo, em Junho passado, declarou num comício que a Bélgica era “uma bonita cidade”. A alguém com dificuldades básicas em geografia seria evidentemente pedir muito que dominasse temas científicos elaborados, como os riscos para a humanidade do aquecimento global. O dito do Satyricon afigura-se tanto mais apropriado quanto Trump habita numa penthouse da Trump Tower, o arranha-céus da 5.ª Avenida que simboliza bem a sua elevada ascensão na construção civil.
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A expressão latina “Asinus in tegulis” vem no Satyricon, a obra clássica de Petrónio. Significa literalmente “um burro no telhado” e tem o duplo sentido de “coisa nunca vista” e de um “ignorante que subiu alto”. Foi essa a expressão que terá ocorrido a muita gente quando, contrariando as melhores previsões, Donald Trump foi eleito Presidente da nação americana. A chegada ao topo do poder de um candidato sem qualquer experiência política é, de facto, algo nunca visto. Por outro lado, são conhecidas as suas limitações quanto ao conhecimento do mundo: por exemplo, em Junho passado, declarou num comício que a Bélgica era “uma bonita cidade”. A alguém com dificuldades básicas em geografia seria evidentemente pedir muito que dominasse temas científicos elaborados, como os riscos para a humanidade do aquecimento global. O dito do Satyricon afigura-se tanto mais apropriado quanto Trump habita numa penthouse da Trump Tower, o arranha-céus da 5.ª Avenida que simboliza bem a sua elevada ascensão na construção civil.
Há quem pense que qualquer presidente de um país democrático, por muitas limitações que tenha, será sempre normalizado por todo um sistema de checks and balances que impede a excessiva concentração do poder. Receio que isso só em parte acontecerá. A ignorância não é uma fatalidade, mas exige algum empenhamento do próprio para a ultrapassar e até lá alguma contenção. E verifico que há no Presidente eleito dos Estados Unidos um irreprimível impulso para o sound byte que parece não ter sido curado pela vitória eleitoral. Veja-se a afirmação recente através do Twitter, a arma que prefere para disparar palavras, de que tinha ganhado “o voto popular, se se descontarem os milhões de pessoas que votaram ilegalmente”. Não só não apresentou qualquer prova abonatória, como se trata de um óbvio tiro no pé, pois estava a declarar que a eleição ganha por ele, com o reconhecimento da sua principal opositora, tinha afinal sido fraudulenta. Mesmo que os tweets passem a ser filtrados por assessores, a tendência de Trump para o disparate parece difícil de controlar. Já agora um pouco mais de latim: “disparate” e “disparar” estão semanticamente relacionados, pois o primeiro vem de disparatus, que significa disparar flechas em todas as direcções, em vez de as dirigir para um alvo. Vamos, vaticino, continuar a assistir a tiros aleatórios, alguns com gravidade do ponto de vista diplomático. Por exemplo, num alegado diálogo telefónico de Trump com o primeiro-ministro do Paquistão, o futuro Presidente terá dito: “Estou disposto a desempenhar qualquer papel que você queira para encontrar soluções para os problemas pendentes.”
Claro que, em democracia, se deve respeitar o voto popular. Mas têm também de ser respeitados os métodos comprovados para apurar a verdade, como por exemplo a lógica. Serão a democracia e a lógica incompatíveis? Poderá o número pi ser, pelo voto, igual a 3,2, em vez de 3,141592654...? De facto a Assembleia do Estado de Indiana discutiu uma lei que teria essa consequência matemática. Mas tal aconteceu em 1897 e essa lei não passou, porque estava na assembleia um professor de Matemática. Convém que alguém evite a promulgação de “pi = 3,2” ou, ainda pior, “2 + 2 = 5”, o slogan político que Orwell colocou em 1984.
Que a Europa não está ao abrigo do pior populismo é mostrado pela recente votação italiana. O primeiro-ministro demissionário, Matteo Renzi, permitiu, com a questão referendária que levantou, que “vozes de burro” ficassem mais perto do céu. O ex-comediante Beppe Grillo, que tem as suas parecenças com Trump (também se tornou popular à custa de espectáculos televisivos), apressou-se a cantar vitória. Silvio Berlusconi, talvez o político italiano mais parecido com Trump (é também um milionário enredado em problemas judiciais), não deixou de sorrir ao saber do “não”, sonhando regressar. E Matteo Salvini, o líder da Liga Norte, que tem em comum com Trump o manejo rápido do Twitter, tweetou logo que foram anunciados os resultados do referendo: “Viva Trump, viva Putin, viva Le Pen e viva a Liga.” Os antigos romanos diziam: “Asinus asinum fricat”, isto é, “um burro coça outro”.
Professor universitário (tcarlos@uc.pt)