O que menos interessa no debate sobre O Último Tango em Paris é a manteiga
Porque é que a cena de sexo anal do filme de Bernardo Bertolucci volta a ser discutida tantos anos depois? Porque é que Hollywood quer a cabeça do realizador italiano? Maria Schneider já não pode voltar a contar a sua história, mas ela merece voltar a ser contada.
Passaram quase 45 anos sobre o sucedido, quase dez sobre a primeira vez que Maria Schneider, a jovem actriz de O Último Tango em Paris, falou publicamente das condições em que rodara a célebre cena de sexo anal do filme de Bernardo Bertolucci em que dividia o ecrã com um Marlon Brando que, admitia, a encantava. Agora que os dois protagonistas já morreram e só resta o realizador, a polémica reacende-se. E amplifica-se. Schneider sabia o que se ia passar antes de começar a ser filmada? Estaria a cena escrita no guião ou foi combinada entre Brando e Bertolucci sem que a actriz dela soubesse? Será que o único pormenor que a jovem francesa desconhecia era a de que a personagem interpretada pelo actor americano, Paul, ia usar manteiga como lubrificante? E, quer soubesse ou não, é legítimo que se tenha sentido violada?
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Passaram quase 45 anos sobre o sucedido, quase dez sobre a primeira vez que Maria Schneider, a jovem actriz de O Último Tango em Paris, falou publicamente das condições em que rodara a célebre cena de sexo anal do filme de Bernardo Bertolucci em que dividia o ecrã com um Marlon Brando que, admitia, a encantava. Agora que os dois protagonistas já morreram e só resta o realizador, a polémica reacende-se. E amplifica-se. Schneider sabia o que se ia passar antes de começar a ser filmada? Estaria a cena escrita no guião ou foi combinada entre Brando e Bertolucci sem que a actriz dela soubesse? Será que o único pormenor que a jovem francesa desconhecia era a de que a personagem interpretada pelo actor americano, Paul, ia usar manteiga como lubrificante? E, quer soubesse ou não, é legítimo que se tenha sentido violada?
Estas e outras perguntas alimentam o debate nas redes sociais e nos jornais e voltam a pôr o foco num dos mais controversos filmes do século XX, ícone do cinema erótico, cuja exibição em Portugal foi proibida até ao 25 de Abril. Na discussão participam jornalistas, actores e realizadores, e as acusações a Bertolucci sucedem-se, pondo em confronto a versão da actriz – que disse numa entrevista em 2007 ao diário britânico Daily Mail que só soube da cena minutos antes da sua rodagem – e a do realizador, que em 2013 já dera a entender que estava escrita no guião e que agora veio reiterar esta posição, admitindo que Schneider só não sabia… da manteiga.
Se a rodagem desta cena polémica aconteceu no começo dos anos 1970 e Bertolucci já dela falou no passado, porque é que o tema volta a ser discutido? Porque as suas explicações de há três anos reapareceram e porque agora, num comunicado enviado à revista Variety, o realizador de 76 anos admite ter decidido não informar Schneider porque tanto ele como Brando queriam dela uma “reacção espontânea ao uso impróprio da manteiga” – queriam que se comportasse como mulher e não como actriz, queriam que a sua humilhação fosse verdadeira.
Procurar esta reacção da mulher quando o contrato que tinha era com a actriz é simplesmente “inaceitável”, diz Miguel Esteves Cardoso, escritor e cronista que tinha 16 anos quando o filme se estreou e que foi vê-lo de propósito a Paris. “Ela está ali como actriz e Bertolucci não tem, por isso, o direito de querer ver como reage enquanto mulher. Devia ser julgado por esse abuso, por essa quebra de confiança que é também uma quebra de contrato.”
Declarado obsceno e escandaloso, com uma classificação para adultos e muito bem recebido pela crítica, O Último Tango em Paris conta a história do encontro parisiense entre um homem maduro que acabara de perder a mulher e estava profundamente perturbado e uma jovem vital com quem passa a manter uma relação com poucas palavras e muito sexo, em que a violência é um ingrediente dominante. Marlon Brando tinha 48 anos e era já uma estrela em Hollywood. Maria Schneider, uma jovem actriz desconhecida, faria 20 já durante a rodagem. A disparidade de forças era evidente.
Bertolucci apaixonado
Para se perceber como o filme acontece – e o que acontece no filme –, é preciso ter em conta o mundo de Bertolucci, disse Maria Schneider à revista Premiere em 2000, numa entrevista citada pela jornalista que a fizera, Holly Millea, no artigo que escreveu para o site de informação Daily Beast quando a actriz morreu, sete anos mais tarde. “[Bertolucci] estava apaixonado por Brando. O papel que eu interpreto foi escrito para um rapaz! Daí a manteiga, a sodomia…”, contou.
Brando e Bertolucci foram nomeados para os Óscares, Schneider foi desprezada pela Academia, embora O Último Tango em Paris lhe tenha trazido fama mundial. Uma fama com que parece não ter sabido lidar, pode ler-se em muitos dos obituários que lhe foram dedicados em 2011, e que a arrastou para uma espiral autodestrutiva, marcada por relações falhadas, pelo consumo de drogas e por várias tentativas de suicídio.
Quando se livrou da heroína, da cocaína e do LSD e regressou a Paris para retomar a sua carreira, fê-lo com energia e acabou por participar em 50 filmes, embora em nenhum tenha voltado a aparecer tão exposta como no de 1972, disse ao Daily Mail em 2007, numa conversa em que revela que Bernardo Bertolucci sempre se portou como um “manipulador”, tanto com ela como com Brando, e que só foi informada da cena que envolve sexo anal no chão do apartamento parisiense momentos antes de ser filmada. “O Marlon disse-me: ‘Maria, não te preocupes, é só um filme’, mas durante aquela cena, mesmo que aquilo que o Marlon estava a fazer não fosse real, as minhas lágrimas eram verdadeiras.” E para que não restasse dúvidas, Schneider acrescentou: “Para ser sincera, senti-me humilhada e um pouco violada, tanto por Marlon como por Bertolucci. Depois da cena, Marlon não tentou consolar-me nem pediu desculpa. Felizmente, só foi preciso um take.”
A escritora Maria Teresa Horta, que viu O Último Tango em Paris quando se estreou em Portugal, logo cinco dias depois da revolução de Abril, não teve dúvidas de que as lágrimas que vira no cinema eram reais. Nem que Maria Schneider tinha sido surpreendida por aquela cena durante a rodagem. “É um filme de uma violência extrema, em particular essa cena, que é terrível e nunca fui capaz de ver de seguida”, diz ao PÚBLICO, lembrando que a actriz sempre se bateu para que esse trecho fosse visto como “uma violação”, sem nunca o conseguir. “Só pode ser visto como uma violação – da personagem, da actriz, de todas as mulheres que vêem o filme. Foi assim, aliás, que a senti naquela altura, eu e outras mulheres que estavam na sala. Todos fomos, até certo ponto, coniventes com aquela violação.”
Para esta feminista que adora cinema mas “detesta” O Último Tango em Paris, é impossível não olhar para o filme de Bertolucci sem sentir repulsa por “aquele protagonista insuportável”, de uma “masculinidade transbordante” que agradava a tantos naquela época, e que, de certo modo, continua a prevalecer em Hollywood, embora as mulheres tenham hoje outro poder de negociação na indústria. “As coisas não mudaram assim tanto como isso, mas mudaram um bocadinho. Isto não quer dizer que o corpo da mulher tenha deixado de ser objectificado.” E o do homem? “Não me venha cá com essa de que é igual, que os dois são tratados da mesma maneira n’O Último Tango e noutros filmes porque não são. Nunca foram.”
Se há quem considere, como Maria Teresa Horta, 79 anos, que o filme de Bertolucci instrumentaliza apenas a mulher, cabendo à personagem de Brando, Paul, o papel dominador, seguindo a cartilha machista de Hollywood, também há quem defenda que é o protagonista masculino o mais humilhado em O Último Tango em Paris. É o seu corpo “a envelhecer” que parece “desesperadamente submisso” perante a energia de Schneider num filme em que o sexo é mostrado como algo “feio, diminuidor e desesperançado” e, ao mesmo tempo, “libertador”, tanto para homens como para mulheres, escreve a jornalista Cristina Odone nas páginas do jornal britânico The Observer, em 2005. “Em apenas duas horas, Bertolucci deitou abaixo o tabu do homem como uma máquina de sexo invencível e tirou às feministas a sua maior arma contra a pornografia. Já não podiam fazer das mulheres as vítimas ou, pelo menos, as únicas vítimas da sexualidade sórdida. A pornografia, tal como o sexo, deixava de ser apenas a maneira de um homem controlar uma mulher, passava a ser uma rua de dois sentidos onde a humilhação é o lamentável destino tanto dele como dela.”
Obviamente uma violação
Se sabia ou não que a cena ia ocorrer, se estava ou não escrita no guião (com ou sem o pormenor da manteiga), pouco importa, defende Madeleine Davies, que escreve no site feminista de informação Jezebel. O facto de Schneider se ter sentido violada “é a única declaração que realmente interessa” em tudo isto, defende. Miguel Esteves Cardoso, 61 anos, é da mesma opinião. “Se Maria Schneider se sentiu violada, foi violada. A manteiga não interessa nada. Tudo o que os outros dizem, incluindo eu, não é minimamente importante. O cabrão aqui é o Bertolucci, que pegou nas suas fantasias nojentas e abusou dela e de Marlon Brando, que disse ter sido exploradíssimo. E agora vem falar disso, quando os outros dois já morreram…”
Para Esteves Cardoso, que nunca gostou do cinema do realizador italiano, O Último Tango em Paris é um filme “sádico” na exposição que faz do corpo envelhecido de Brando, “um dos maiores actores de sempre”: “Sempre achei que o filme era pouco credível, falso. Lembro-me de sair do cinema a pensar que não fazia sentido nenhum uma miúda da minha idade se encontrar num apartamento de Paris com um velho de 50 anos só para foder, sem dizer nada. Quando se tem 16 anos, alguém com 50 é como se tivesse 130.”
O realizador Joaquim Leitão, 59 anos, é, por oposição, um apreciador de muitos dos filmes de Bertolucci. Viu O Último Tango em Paris em Londres quando era adolescente, numa viagem de finalistas, e lembra-se de ter ficado um pouco desapontado, mas por motivos bem diferentes: “Eu era um adolescente e a minha esperança era de que a cena da violação fosse um bocadinho mais explícita, queria que fosse mais gráfica.”
As cenas de sexo entre os dois, que muitos julgaram reais, foram sempre simuladas, disse muitas vezes a actriz, garantindo que, fora do ecrã, não havia entre os dois qualquer atracção e sim uma relação pai-filha. No dia em que Schneider fez 20 anos, Brando encheu-lhe o camarim de flores e deixou um cartão em que escreveu apenas: “De um admirador desconhecido.” Ficaram amigos até ao fim.
Quando Schneider morreu, aos 58 anos, com um cancro, o realizador mandou uma pequena nota à revista Premiere que pode ser lida como um pedido de desculpas público: “A morte [da Maria] chegou demasiado cedo. Apesar de não ter conseguido dar-lhe um abraço, gostava de lhe dizer que sempre me senti ligado a ela… E, pelo menos desta vez, pedir-lhe que me perdoe.”
Falando a propósito da sua morte, a norte-americana Penelope Spheeris, realizadora e sua amiga, defendia em 2011 que Hollywood olhava com um certo desconforto para Maria Schneider e que o facto de a actriz ser lésbica pesou na sua relação com a indústria: “Ser tamanho símbolo sexual, tão profundamente bonita, ter tal carisma e não estar disponível para os homens? Hollywood simplesmente não aceitou isso. Não me interessa o que as pessoas dizem, nesta cidade quem manda são os homens. Sempre.”
O debate sobre a Hollywood patriarcal é recorrente e este episódio recente, que já desencadeou uma petição contra a violência de género na indústria e contra o próprio Bertolucci, reúne certamente muitos descontentes. Mas também não faltará quem acuse os seus críticos de revisionismo e de falsos moralismos.
O realizador Joaquim Leitão diz que o filme precisa de contextualização, mas defende que, independentemente da época em que foi feito, “se houve qualquer coisa que aconteceu contra a vontade de Maria Schneider, isso é inqualificável”. “Tudo isto é especulação – para se esclarecer, tem de vir alguém que tenha presenciado a cena, que não o Bertolucci, falar. Se não aconteceu nada sem que Maria Schneider consentisse e ela apenas reagiu mal ao impacto que o filme teve, é uma coisa; se ela foi forçada a fazer algo que não queria, é outra completamente diferente. Há um pacto entre o realizador e os actores que não se deve quebrar – e tem limites. Nenhum filme merece que um actor sofra."