Quem tem medo de Roger Ballen?
O último trabalho do fotógrafo, The Theatre of Apparitions, remete para a consciência colectiva da raça humana e promete causar desassossego. Estará em exposição na Barbado Gallery, em Lisboa, a partir de 4 de Dezembro
O fotógrafo norte-americano Roger Ballen é conhecido por criar imagens estranhas, perturbadoras e inesperadamente familiares. Ao longo da sua carreira, somam-se as imagens icónicas que realizou em lugares ruinosos, habitados por pessoas que vivem, de forma extrema, à margem da sociedade. O objectivo de Ballen foi sempre um: questionar o significado e sentido da existência humana. O objecto, porém, foi-se alterando ao longo dos anos. The Theatre of Apparitions mergulha mais fundo na mente de Ballen e revela, pela primeira vez, um universo desprovido de objectos, pessoas, tridimensionalidade. Um mundo “ballenesco” depurado, habitado por monstros e criaturas primitivas que encenam o absurdo teatro da vida.
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O fotógrafo norte-americano Roger Ballen é conhecido por criar imagens estranhas, perturbadoras e inesperadamente familiares. Ao longo da sua carreira, somam-se as imagens icónicas que realizou em lugares ruinosos, habitados por pessoas que vivem, de forma extrema, à margem da sociedade. O objectivo de Ballen foi sempre um: questionar o significado e sentido da existência humana. O objecto, porém, foi-se alterando ao longo dos anos. The Theatre of Apparitions mergulha mais fundo na mente de Ballen e revela, pela primeira vez, um universo desprovido de objectos, pessoas, tridimensionalidade. Um mundo “ballenesco” depurado, habitado por monstros e criaturas primitivas que encenam o absurdo teatro da vida.
O projecto teve início em 2004, quando Ballen gravava com a realizadora Saskia Vredeveld o filme Memento Mori, numa prisão para mulheres abandonada, em Joanesburgo. Uma das celas tinha as janelas pintadas de negro; a luz penetrava apenas através dos desenhos que a antiga residente raspou na tinta. Aliada à reclusão física, a prisioneira experimentaria também uma clausura psicológica, uma ausência de estímulo externo que a conduziria a uma sobredose do “eu”, a uma janela para a imaginação e abstracção que permitiria um vislumbre das profundezas sua própria consciência. Logo após esta descoberta, Ballen começou a recriar o processo e a experimentar imagens semelhantes sobre vidros de janelas de edifícios. No início de 2007, Marguerite Rossou – assistente de Ballen – interessou-se pelo projecto e deram, em conjunto, início às experiências que conduziram ao produto final de The Theatre of Apparitions.
Uma busca na escuridão
À semelhança da mulher aprisionada em Joanesburgo, Ballen buscou na escuridão e na ausência de estímulo as imagens que habitam a sua mente. Abaixo da superfície do consciente surgiram as criaturas que retrata no fotolivro e que acredita serem originárias “de uma consciência colectiva da raça humana”. “Relembram pinturas do paleolítico: algumas das relações entre humanos e cães, pássaros e bestas que estão presentes nas imagens evocam ligações primordiais”, pode ler-se no prefácio da obra. “Funcionam como uma espécie de memória fóssil de visões xamânicas e de símbolos sagrados que herdámos e que se mantêm gravados nas nossas mentes mesmo após o largo período evolutivo por que passámos. Normalmente, quando permitimos que a nossa mente se liberte e flua no seu caudal natural, vamos ao encontro de algumas dessas performances.”
Ballen, que é geólogo de formação, vê O Teatro das Aparições como uma escavação da mente humana, onde é possível observar a “matéria” dos sonhos, mas impossível explicar o seu significado ou origem. Em entrevista ao PÚBLICO, Ballen afirma que “as imagens pertencem a um mundo arquetípico”. “É impossível entender o funcionamento da mente e do processo criativo. O processo é misterioso. No que toca a motivações para a realização do projecto, julgo com ele tentar responder a algumas questões que me assomam. Estas imagens são ‘retratos’ de aparições. O que é uma aparição? É um espírito. O que é um espírito? É a forma que alguém assume após a morte. Talvez esta seja a minha forma de me conciliar com a morte, de me conformar com o mistério da condição humana. Estas aparições levantam muitas questões, mas não fornecem nenhuma resposta. Tento servir-me da fotografia como ferramenta para colocar tudo sob uma perspectiva lógica. É por isso que adoro tirar fotografias, ajudam-me a ordenar internamente as questões.”
Como uma dramaturgia
Aos 66 anos, Ballen assume que “algumas coisas estão, de facto, a mudar” na sua abordagem. “O facto de ter definitivamente abandonado o retrato e tê-lo substituído pela inclusão de outros meios de expressão – como o desenho, a pintura, a escultura, a instalação, o vídeo – é uma das mudanças mais assinaláveis. The Theatre of Apparitions é, no seu cerne, um trabalho fotográfico, mas está mais afastado da fotografia tradicional do que todo o meu trabalho anterior. Já não se trata de captar o mundo exterior, trata-se de documentar a psique, o mundo interior, o arquétipo.”
O fotolivro está dividido em sete actos, como se de um texto dramatúrgico se tratasse. Cada um marca um diferente estágio da vida, desde o nascimento até à desmaterialização. Persona centra-se na construção da identidade, Burlesque, na acção e no jogo, Eros na maturidade sexual, Transmuted no envelhecimento, Melancholy na proximidade do fim, Fragmentation na separação do corpo da alma e Ethereal na não-existência. “Tem-se tornado claro para mim que todas as formas de vida têm um espírito singular. Se nos tornamos num espírito depois da nossa breve passagem pela Terra, não é inconcebível que tudo o que algum dia já viveu se torne numa aparição.”
A resposta do público a este trabalho, segundo o fotógrafo, tem sido positiva. “As pessoas sentem que existe algo nas imagens que faz com que sintam uma ligação imediata com elas. Sentem que elas fazem parte dos seus sonhos, que fazem parte da sua mente, de si próprias. Isto é um excelente sinal, para um artista. Não há nada melhor. Significa que consegui entrar nas suas mentes. É exactamente isso que se pretende da arte.”