Experimental e intimista, eis o improvável Madeira Dig

Em Dezembro a família internacional das músicas electrónicas exploratórias reúne-se numa Estalagem na Ponta do Sol para o festival Madeira Dig, que começou sexta com Sonic Boom e termina esta segunda com o americano Yves Tumor.

Fotogaleria

Foi sexta-feira. Noite de chuva intensa e dezenas de vultos, a larga maioria proveniente de diversos países europeus, saiam apressados de um autocarro estacionado à beira da estrada, dirigindo-se na direcção do Mudas, o magnífico Museu de Arte Contemporânea da Madeira, que parece diluir-se na paisagem, ladeado por encostas e mar, tornando o ambiente misterioso. A imagem era tão estranha que um carro passa e lá de dentro uma voz interroga-nos sobre o que é que se passa ali?

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Foi sexta-feira. Noite de chuva intensa e dezenas de vultos, a larga maioria proveniente de diversos países europeus, saiam apressados de um autocarro estacionado à beira da estrada, dirigindo-se na direcção do Mudas, o magnífico Museu de Arte Contemporânea da Madeira, que parece diluir-se na paisagem, ladeado por encostas e mar, tornando o ambiente misterioso. A imagem era tão estranha que um carro passa e lá de dentro uma voz interroga-nos sobre o que é que se passa ali?

Não surpreende a perplexidade. O Mudas não tem muita actividade diurna quanto mais nocturna. E depois a conjugação de factores levou o habitante na adjacente localidade da Calheta, a questionar-se sobre o estranho ritual que presenciava. O ritual tem um nome desde 2004: Madeira Dig, é um festival que conjuga electrónica exploratória, público das mais diversas frentes europeias e turismo cultural. É provavelmente mais conhecido em Berlim do que em Portugal, daí também o pasmo.  

Numa altura em que todos os festivais fazem questão de reivindicar a sua identidade, aquilo que supostamente os distingue dos demais, eis um evento onde isso não é apenas retórica. O Madeira Dig é mesmo singular. É-o pela intransigência do cartaz ao longo dos anos. Pela particularidade de uma unidade hoteleira (Estalagem da Ponta do Sol) assumir uma vincada personalidade cultural ao longo do ano. Por se realizar entre a Calheta e a Ponta do Sol e não na cidade do Funchal. E por atrair um público conhecedor proveniente das mais diversas paragens europeias.

O cartaz é invariavelmente consistente (Oneohtrix Point Never, Tim Hecker, William Basinski, Lee Ranaldo, Fennesz, Oval, Alva Noto, Ben Frost, Jamie Lidell ou Grouper são alguns nomes que passaram pela Madeira). A organização é tripartida pela Agência de Promoção da Cultura Atlântica (APCA), em parceria com a Estalagem da Ponta do Sol e o portal Digital in Berlin. E o ambiente é intimista, quase familiar. Não surpreende que muita gente regresse depois e traga os amigos ou familiares.

Já se percebeu. Não é um acontecimento de massas. O registo não é esse. Todos os anos chegam cerca de 200 pessoas oriundas de países como a Alemanha, Inglaterra, Itália, França ou Noruega e são elas o núcleo do acontecimento, complementadas por quem vem de Lisboa e Porto e, claro, da Madeira. É um público que vem pela música, mas também atraído pelo clima ameno e pelo ambiente relaxado dos quatro dias do evento. Durante o dia descobrem-se os cantos da região ou fazem-se caminhadas e à noite decorrem as actividades do festival.  

A esmagadora maioria dos que vêm de fora esgota a Estalagem e o Hotel da Vila da Ponta do Sol, sendo transportados, depois do jantar, de autocarros para o Mudas, na Calheta, a 15 minutos. Depois dos concertos, no auditório, regressa-se à Estalagem, situada numa falésia, onde acontecem mais sessões DJ ou concertos, por norma com carácter mais lúdico. Pelo meio é servida uma refeição ligeira, com a assistência que foi ao Mudas, a juntar-se a quem vem apenas à Estalagem, numa atmosfera informal e acolhedora, com artistas e público misturado. 

E aí tanto podemos encontrar a compositora e harpista americana Zeena Parkins, habitual colaboradora de Björk, em amena cavaqueira, como depararmo-nos com uma das revelações deste ano no campo da música mais aventureira, o americano Sean Bowie (ou seja, Yves Tumor), a improvisar uma sessão de piano num dos bares do espaço.  

Tanto Parkins como Tumor, ou os ingleses Helm, estão guardados para os dois dias finais do festival, que termina segunda-feira à noite, mas antes, sexta e sábado, a música já se fez ouvir. É por ela, apesar de todas as outras motivações, que o auditório do Mudas se enche. Na sexta, o fundador dos Spacement 3 e mentor dos projectos Spectrum e E.A.R., o inglês Peter Kember, adoptando o pseudónimo Sonic Boom, apresentou temas novos, que dedicou às “plantas e árvores” do planeta.

Como parte dos outros estrategas que actuam no Mudas, desencadeia a sua acção a partir de computador portátil, samplers, programações e projecção de imagens, começando de forma expansiva, para se tornar progressivamente mais virulento, enquanto atrás de si nos são dados a ver motivos psicadélicos, num todo abstracto, imersivo e ambiental.

Mais performativo foi o sueco Peder Mannerfelt, conhecido por outras aventuras (Roll The Dice, Subliminal Kid) e colaborações (Fever Ray, Glasser), com uma longa cabeleira loira a taparem-lhe o rosto, criando uma imagem bizarra, como a sua estimulante música digitalizada e sombria que, no entanto, se revela futuristicamente sensual. No sábado, o destaque foi para o franco-suiço Kassel Jaeger, numa sessão onde o ruído ambiental andou a par da improvisação electroacústica, e para as desconstruções tecno de Lakker, tão capaz de propor paisagens imóveis como arrancar configurações industriais.

Quase no extremo oposto situam-se as sessões na Estalagem. Ali a ciência electrónica é colocada ao serviço do hedonismo. Pelo menos se por perto estiverem a francesa Laura Clock, que propôs um som electrónico com influências jamaicanas e, principalmente, os portugueses Firmeza e Lilocox, da editora Príncipe, que colocaram toda a gente em delírio e a dançar ao ritmo do afro-house e de outros paliativos semelhantes. E essa é capaz de ser a equação final para compreender o Madeira Dig. Para além de ser experimental, intimista e insólito, é também uma celebração.

Esta segunda-feira o festival termina com Yves Tumor e Marina Rosenfeld & Ben Vida (no Mudas) e Golden Disco Ship e Michael Rosen (na Estalagem).