Três amigos conversam sobre o entusiasmo e o desentusiasmo
"Os partidos da 'geringonça' não têm entusiasmo na 'geringonça'. Nem o PS. Talvez António Costa, mas esse consegue ser mais optimista do que a Mão de Deus", diz Salviati.
(Três amigos conversam. Têm nomes italianos, mas são universais: Simplício, Salviati e Sagredo. Gente que vem de longe.)
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(Três amigos conversam. Têm nomes italianos, mas são universais: Simplício, Salviati e Sagredo. Gente que vem de longe.)
Salviati – Uma grande verdade sobre os tempos que correm é que ninguém está entusiasmado com coisa nenhuma. Já reparaste?
Sagredo – De quê? Em quê? Na política? Nas artes? Na vida?
Salviati – Na política.
Sagredo – Bom, também não vejo nenhum entusiasmo fora da política. É capaz de ser uma doença geral. Há quantos anos não se publica um livro bom? Já não digo excepcional, mas apenas bom, suficientemente bom… Um romance, um livro de poesia, qualquer coisa nova, que marque..
Salviati – Nem há anos, nem há décadas. Mas deixa para lá.
Simplício – Há entusiasmo no turismo…
Salviati – Não me gozes.
Sagredo – Na política, não é verdade. Há quem esteja entusiasmado e não é pouco.
Salviati – Esse não conta. Não está cá na terra.
Simplício – Quem?
Sagredo – O nosso Presidente. Está completamente entusiasmado consigo próprio. E os portugueses com ele.
Salviati – Deve ser a Mão de Deus, a que devemos o respeito de colocar um azulejo ao contrário. Ele é o azulejo ao contrário.
Simplício – Convosco é assim, começamos na política, já vamos nos azulejos. Mas que é isso?
Salviati – Os pedreiros muçulmanos deixam sempre um azulejo mal posto para mostrar que a perfeição é de natureza divina.
Sagredo – Nós por cá fazemos tudo torto, mas não é por causa de Deus. Sem entusiasmo, dizes. Dá lá exemplos.
Salviati – Os partidos da “geringonça” não têm entusiasmo na “geringonça”. Nem o PS. Talvez António Costa, mas esse consegue ser mais optimista do que a Mão de Deus.
Sagredo – Irritante. A Mão de Deus queria o monopólio de tudo, a começar pelo optimismo.
Simplício – Deixem lá o homem, eu gosto dele e voto nele.
Sagredo – Percebe-se a falta de entusiasmo. Mas sempre há um desentusiasmo…
Simplício – Isso existe? Ou é um neologismo?
Sagredo – Ai existe, existe! A ver se não foi a sombra do PAF que gerou a geringonça! Passos e Portas desentusiasmavam a maioria dos portugueses e isso gerou a “geringonça”. Isto está muito onamatopeico…Teve tanta força que mudou quarenta anos de política em democracia.
Salviati – Sem retorno, mas também sem se ver o futuro. É por isso que não há entusiasmo. Como é daqui a um ano ou dois, como é? Vai o PS sozinho a eleições? Contra o PSD e o CDS percebe-se, mas como é que arranja uma maioria absoluta (duvido) sem fazer campanha contra a esquerda? E vice-versa?
Sagredo – Podem ir juntos, seja com um acordo parlamentar, seja com uma coligação.
Simplício – Como a dos bifes do Império, a “coligação de que todos gostam” – bife e ovo a cavalo…
Salviati – Não é fácil neste contexto de radicalização prever que a direita não tenha bastantes votos em legislativas. Vai ter. Vai ser lado contra lado, um lado perfeito e outro defeituoso. Olhem para Espanha.
Sagredo – Mas, para haver esse confronto, devia haver uma estratégia construída já, ou desde já. Senão a coligação desfaz-se à medida que caminhamos para as vésperas das eleições. A oposição a Costa vai querer o “PS sozinho” a medir forças com o BE e o PCP, e isso só se pode fazer de forma litigiosa.
Simplício – Então Costa entrou na “geringonça” e não pode sair dela…
Sagredo – Nem o PCP, nem o BE. Pelo menos para já. Quatro anos não são nada. E só acaba o tempo da geringonça, quando mudar o ambiente que foi gerado nos últimos cinco anos. E não é fácil. A “geringonça”, se for quebrada mal, e só pode ser a mal, dá a vitória à direita, do modo como as coisas estão.
Simplício – Mas também não vejo nenhum entusiasmo com Passos. E Portas anda a ganhar dinheiro.
Sagredo – … e a Assunção Cristas anda dedicada à radicalidade do amor…
Salviati – Sim, mas à direita a gestão da “unidade” é sempre mais fácil. E tem com eles interesses muito poderosos, a começar pela “Europa”. Esses interesses provaram o poder nos últimos anos como nunca tinham provado desde o 25 de Abril. E não estão aplacados, nem mansos. Virão para a guerra com todos os seus criados e servos em formação disciplinada. Tem sempre vantagem eleitoral.
Simplício – Mas as sondagens…
Sagredo – … são sondagens de alívio. Ainda há um alívio muito forte com a ida do PAF para a oposição.
Salviati – E há uma coisa ainda pior, que funcionava antes a favor de Passos e hoje funciona a favor de Costa – o que está tem muita força. A opinião e a comunicação são muito sensíveis ao poder e hoje Passos parece em queda. É um mecanismo muito perigoso, porque qualquer problema grave com a economia vai pôr toda a gente que atacou Passos, com o Diabo que faltou à chamada, a dar-lhe razão e a desculpar o Diabo por se ter atrasado. Há um jogo complicado nestes mecanismos de vaivém da opinião e da comunicação…
Simplício – Dás muita importância a isso?
Salviati – Dou. É por isso que a questão do entusiasmo é mais importante do que parece. Em condições normais podemos bem viver “habitualmente”, sem paixões, mas em momentos muito radicalizados estes “hábitos” geram inércia e quem vai estar à defesa já perdeu.
Sagredo – Sim, a agressividade da direita pode isolá-la hoje, mas dá-lhe uma capacidade de mobilização mal haja qualquer sinal de que a coligação ou o Governo encontram uma dificuldade maior.
Sagredo – Não só maior… ainda pior é se essa dificuldade ocorrer no terreno em que os entendimentos à esquerda são mais frágeis – banca, défice, Europa. Essas são também as áreas em que a direita está mais aconchegada pelo “pensamento único” e pela Europa. Tudo o que aconteça de mal já tem o dedo apontado.
Simplício – E como não vamos sair da cepa torta, enquanto estamos a ser governados pela Europa como estamos, a coligação está em contraciclo e Passos e Cristas bem no ciclo…
Sagredo – É assim mesmo, grande Simplício, podes ser aristotélico, mas burro não és!
Salviati – Agora chama-se “disfunção cognitiva temporária”, mas não se pode dizer.
Sagredo – O homem disse uma coisa elegante e caiu-lhe tudo em cima, Cristas chama “cobarde” a Costa e acham todos bem. É por isso que o mundo não está para os moles…
Salviati – Está para os maus.
Simplício – Sempre se pode cantar o Acordai.
Sagredo – E tem de ser bem alto para ver se faz efeito.
E continuaram a seguir o seu caminho. Ia chover. Até para a semana.