Jorge Sampaio e a “ameaça populista”
O combate de Sampaio contra o “populismo” em Portugal far-se-á, pelos vistos, contra a esquerda. Manuel Alegre percebeu bem no tom o desenho de uma “nova deriva centrista [que] poria em causa a estratégia que conduziu à formação do Governo PS apoiado pelos partidos à sua esquerda".
Generalizou-se, finalmente, a perceção de que o tempo que vivemos tem “similitudes flagrantes com a atmosfera europeia dos anos de 1920 e 30”, como até já o diz o próprio ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva (PÚBLICO, 15.11.2016). A vitória de Donald Trump, o avanço eleitoral da extrema-direita e a sua (re)entrada na esfera do poder em grande parte da Europa, nos EUA e na América Latina deve ser lida (também) à luz da crise que há 80-90 anos transformou um grande número de regimes liberais em ditaduras fascistas ou fascizadas.
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Generalizou-se, finalmente, a perceção de que o tempo que vivemos tem “similitudes flagrantes com a atmosfera europeia dos anos de 1920 e 30”, como até já o diz o próprio ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva (PÚBLICO, 15.11.2016). A vitória de Donald Trump, o avanço eleitoral da extrema-direita e a sua (re)entrada na esfera do poder em grande parte da Europa, nos EUA e na América Latina deve ser lida (também) à luz da crise que há 80-90 anos transformou um grande número de regimes liberais em ditaduras fascistas ou fascizadas.
Desde há anos que insisto no potencial fascizante de uma crise financeira que acionou o mais poderoso dos aspiradores que suga dos pobres para dar aos ricos (e a que os neoliberais têm chamado “austeridade”), que, a pretexto do que se nos tem descrito como sendo as “consequências irreversíveis da globalização”, asfixia a saúde e a educação públicas de que depende 90% da população, dá cabo de pensões e remunerações, humilha trabalhadores de 40 e 50 anos e explora jovens e migrantes, a todos querendo convencer serem culpados do seu próprio desemprego, da sua pobreza, das suas doenças crónicas.
Crises assim, sabemo-lo há muito, servem de instrumento de recomposição das relações sociais e de rearticulação do capital e do poder. Na vida dos Estados, abrem caminho a novos regimes. E era bom que nos lembrássemos que os novos regimes não surgem sempre, nem a maioria das vezes, por golpes ou revoluções armadas. Os de Mussolini e Hitler instalaram-se no poder por processos perfeitamente constitucionais que se desenvolveram na fase a que Daniel Woodley e Mark Neocleous têm chamado o “liberalismo autoritário”, sustentados sobre coligações de direita que rapidamente se fascizaram. Quem achar a comparação excessiva aceite pelo menos lembrar-se de como direitas que se diziam democráticas apoiaram e participaram plenamente nas ditaduras latino-americanas dos anos 60, 70 e 80. Não se espere hoje que o establishment modere Trump porque é ele que se está a trumpizar a bom ritmo, da mesma forma que já Berlusconi berlusconizara grande parte do aparelho de Estado italiano.
Neste contexto, a social-democracia (SD) europeia pode ser decisiva. A muito evidente viragem liberal que assumiu desde os anos 80 já foi determinante na imposição de uma globalização da desregulamentação, das privatizações, da precarização do trabalho. A sua responsabilidade foi central na construção (e ainda hoje o é na gestão) da Europa do euro e da União Económica e Monetária, e era urgente que fizesse o seu mea culpa pelo papel que desempenhou nestes 20 anos que entre Maastricht (1992) e o Tratado Orçamental (2012).
Um seu dirigente histórico em Portugal, Jorge Sampaio, quis há dias fazer neste jornal “um exercício de militantismo europeu”, sublinhando que “a dinâmica do capitalismo global (…) exige da Europa e dos países europeus a determinação de se constituir como uma alternativa sólida (…) à financeirização da economia e (…) ao capitalismo autoritário de ‘valores asiáticos’”. Ao achar que “a Europa do euro — a dos 19 do euro” deveria ser “o verdadeiro núcleo duro de uma UE reformada”, Sampaio parece querer combater “o capitalismo autoritário” com o ministro alemão Schäuble, com o holandês Dijsselbloem ou o comissário Dombrovskis...
Lembrar-se-á ele como estes senhores trataram a Grécia e nos trata(ra)m a nós? “A crise que a Europa atravessa hoje, e que já ninguém nega, tem raízes bem mais profundas (…) e problemas que foram deixados para trás sem que tivesse havido tentativas sérias de os resolver”. Ora entre eles não estarão uma moeda única cuja gestão serve de pretexto para desrespeitar vontades democraticamente expressas? Um tratado que viola a legitimidade dos parlamentos nacionais para decidir sobre como gastar o dinheiro dos contribuintes? Uma União manipulada por uma Alemanha hegemónica?
Mais dececionante é que, no único país onde a SD inverteu o sentido seguido nos últimos 30 anos, Sampaio volte ao tom do velho blairismo que tão pesadas responsabilidades tem na descredibilização generalizada da social-democracia do séc. XXI, propondo que a “UE [reate] com o melhor da sua tradição, a que combina a liberdade que vem do liberalismo com a estabilidade, o bem-estar e a equidade social que vem da social-democracia” (PÚBLICO, 14.11.2016).
Fosse ao menos isto uma denúncia, quanto à liberdade, da eternização do estado de emergência em França, ou, quanto à equidade, do que Manuel Alegre, chamou “a traição aos princípios e a abdicação da nossa família política europeia que nos atiraram para o abismo” (PÚBLICO, 24.11.2016)! Pelo contrário: Sampaio junta-se ao coro dos que, imaginando-se num centro virtuoso e injustamente incompreendido, colocam no mesmo saco os “radicalizados à esquerda ou à direita [que] apelam ao fim do projeto europeu e ao regresso do protecionismo e dos nacionalismos”, denunciando como “nacionalistas” as posições “do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda” sobre as políticas europeias, “cada vez mais fortes” no nosso país porque beneficiam “da ausência de uma força populista de direita”. Ou seja, temos Jerónimo porque não temos Trump, temos Catarina porque não temos Marine...
O combate de Sampaio contra o “populismo” em Portugal far-se-á, pelos vistos, contra a esquerda. Manuel Alegre percebeu bem no tom o desenho de uma “nova deriva centrista [que] poria em causa a estratégia que conduziu à formação do Governo PS apoiado pelos partidos à sua esquerda”, e perguntou-se: “Será que este Governo também é populista?”
Com a crise nos roubaram trabalho e segurança nas relações sociais; com a luta contra o terrorismo nos tiram, na Europa, a liberdade e as garantias do Estado de Direito. Um novo autoritarismo ameaça legalizar-se, tornar-se regime. Com quem quer Sampaio combatê-lo? Com quem nos trouxe até aqui?