Coração das trevas
Biografia monumental de Heinrich Himmler. Uma obra esmagadora de investigação histórica, escrita num estilo apaixonante.
“O livro está repleto de verdades”, escreveu Heinrich Himmler sobre Mein Kampf, observação que bem se poderia aplicar a esta biografia do Reichsführer-SS da autoria do historiador alemão Peter Longerich (n. 1955). Autor de uma conceituada obra sobre o Holocausto, Longerich produziu também duas biografias gigantescas: uma, mais recente, de Josef Goebbels; outra, sobre Himmler, de 2008, saída em inglês em 2011 e agora traduzida entre nós. O livro começa com uma descrição da captura e do suicídio de Himmler, em jeito de novela policial. E, nesse registo, suscita-se de imediato uma dúvida perturbante: por que motivo o meticuloso exame feito pelos ingleses a todos os orifícios do corpo de Himmler não incluiu a boca, onde se alojava a cápsula de cianeto com que o Reichsführer-SS se mataria? Para mais, tinham já descoberto uma ampola com veneno no seu casaco… Logo nas primeiras linhas, percebe-se que este volume, com mais de 900 páginas, está construído para captar o interesse e a atenção do leitor, conseguindo-o plenamente. A investigação que lhe subjaz é inaudita, bastando atentar na lista interminável dos arquivos que Longerich percorreu em todo o mundo ou no caudal de notas que constam do final do livro.
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“O livro está repleto de verdades”, escreveu Heinrich Himmler sobre Mein Kampf, observação que bem se poderia aplicar a esta biografia do Reichsführer-SS da autoria do historiador alemão Peter Longerich (n. 1955). Autor de uma conceituada obra sobre o Holocausto, Longerich produziu também duas biografias gigantescas: uma, mais recente, de Josef Goebbels; outra, sobre Himmler, de 2008, saída em inglês em 2011 e agora traduzida entre nós. O livro começa com uma descrição da captura e do suicídio de Himmler, em jeito de novela policial. E, nesse registo, suscita-se de imediato uma dúvida perturbante: por que motivo o meticuloso exame feito pelos ingleses a todos os orifícios do corpo de Himmler não incluiu a boca, onde se alojava a cápsula de cianeto com que o Reichsführer-SS se mataria? Para mais, tinham já descoberto uma ampola com veneno no seu casaco… Logo nas primeiras linhas, percebe-se que este volume, com mais de 900 páginas, está construído para captar o interesse e a atenção do leitor, conseguindo-o plenamente. A investigação que lhe subjaz é inaudita, bastando atentar na lista interminável dos arquivos que Longerich percorreu em todo o mundo ou no caudal de notas que constam do final do livro.
É certo que o facto de Longerich ter decidido escrever uma biografia que cobre toda a vida de Heinrich Luitpold Himmler, do nascimento em Munique, em Outubro de 1900, ao seu suicídio em Lüneburg, em Maio de 1945, implica que, apesar da monumentalidade da obra, esta não aprofunde à exaustão alguns aspectos do percurso do biografado, como sucede num livro mais recente, saído em 2011, de Klaus Mües-Baron: Heinrich Himmler – Aufstieg des Reichsführer SS, outro volume esmagador, de mais de 500 páginas, mas que termina em 1933 e, portanto, não abrange os anos decisivos da guerra. Por outro lado, a obra de Longerich não é a “biografia definitiva” de Himmler, ao invés do que se afirma na frase promocional apresentada na capa. Na verdade, e como assinala o próprio autor a propósito da correspondência entre Heinrich e a sua mulher, Margarete, “as cartas dela foram preservadas; as dele talvez ainda existam, mas não estão acessíveis a pesquisadores” (p. 109). Longerich sabia da sua existência, bem como do facto de o director dos arquivos federais de Koblenz, Josef Henke, ter confirmado a autenticidade daquela documentação, baseando-se num microfilme. Trata-se da chamada “colecção de Telavive”, um espólio epistolar valiosíssimo, composto por mais de 700 cartas escritas por Heinrich a Margarete, entre 1937 e 1945. Os seus atribulados caminhos são dignos de um thriller: levadas em 1945 da “Casa Lindenfycht”, a residência privada de Himmler, por um GI americano que as guardou como souvenirs de guerra, ainda hoje não se sabe ao certo como foram aquelas cartas parar a Israel, crê-se que pelas mãos de um sobrevivente do Holocausto, que primeiro disse tê-las comprado numa feira de velharias em Bruxelas, afirmando depois que as adquirira no México, a um familiar de Himmler. Actualmente, são propriedade da documentarista israelita Vanessa Lapa, que com base nelas realizou o filme Der Anständige/O Homem Decente, apresentado pela primeira vez ao público em 2014, no Festival de Cinema de Berlim. Reunindo a “colecção Himmler” do arquivo de Koblenz e a “colecção de Telavive”, o historiador Michael Wildt e a sobrinha-neta do dirigente nazi, Katrin Himmler, elaboraram em 2014 a edição crítica Heinrich Himmler – Correspondência, publicada entre nós no início deste ano, pela Bertrand. Justificar-se-ia, assim, que, ao dar à estampa uma biografia de Himmler originalmente escrita em 2008, houvesse o cuidado de solicitar ao autor uma nota introdutória de actualização para a edição portuguesa, na qual a nova e importante documentação, entretanto divulgada em filme e em livro, fosse pelo menos mencionada, ainda que acervo epistolar de Telavive não infirme, antes reforce, tudo o que Peter Longerich escreve neste livro agora vindo a lume entre nós.
Se descontarmos tal lacuna, todos os elogios que se façam a esta obra sempre pecarão por defeito. Peter Longerich descreve exemplarmente o modo sinistro, mas notável, como Heinrich Himmler conseguiu, passo a passo, transformar as SS, uma guarda pessoal do partido e do Führer, numa poderosíssima máquina sob o seu comando, que exercia funções paramilitares – ou mesmo militares – mas também controlava a vida universitária, promovia investigações para confirmar “teses” pseudocientíficas apreciadas por alguns líderes nazis, como a Teoria do Gelo Cósmico, ou organizava expedições para satisfazer os interesses pessoais do Reichsführer-SS, como a empreendida ao Tibete em 1938, sob o comando de Ernst Schäfer. Esta demanda das origens ancestrais na raça ariana foi objecto de um livro fascinante, Himmler’s Crusade, de Christopher Hale, o qual, inexplicavelmente, não foi traduzido em português.
A biografia escrita por Longerich segue todos os momentos da ascensão vertiginosa de Heinrich Himmler, não deixando, aqui e ali, de procurar uma “explicação” de conjunto para as suas acções. O autor refere a preponderância de uma “dupla moral pequeno-burguesa” (p. 15), alude a “transtornos de vínculo” e à sua incapacidade de se relacionar com os outros, em especial os do sexo oposto (p. 47), ensaia uma caracterização psicológica da personalidade biografada mas, a dado passo, com admirável honestidade, acaba por reconhecer que todas estas tentativas de “explicação” se encontram votadas ao insucesso, já que milhares de alemães com percursos de vida semelhantes, marcados por figuras paternas severas, pela prática germânica dos duelos entre a juventude, pelos dramas da Grande Guerra ou pela hiperinflação dos anos 20, não lideraram uma organização como as SS nem um programa de extermínio em massa de milhões de seres humanos. Relativamente a Adolf Hitler, as tentativas de apresentar uma “explicação global” da sua intrínseca “maldade” são tantas e tão variadas que já levaram mesmo à publicação de um conhecido livro que se dedicou exclusivamente a recenseá-las, uma a uma: Explaining Hitler. The Search for the Origins of His Evil, de Ron Rosenbaum (ed. revista, 2014). No caso concreto de Himmler, há um traço que sobressai: o trauma de não ter participado na Grande Guerra, ao contrário do seu irmão Gebhard, que regressou a casa ileso e condecorado com a Cruz de Ferro. “Durante boa parte da sua vida, [Heinrich Himmler] manteria a convicção de ter sido impedido de seguir a sua real vocação de oficial”, escreve Longerich. Na verdade, ele e todos os demais cadetes nascidos em 1900 foram desmobilizados mesmo no final da guerra, em Dezembro de 1918, quando estavam prestes a entrar em combate. Tornou-se depois estudante de Agronomia, uma escolha típica de oficiais desmobilizados, arranjou emprego como assistente numa fábrica de adubos, mas jamais perdeu o fascínio pela organização castrense e pela virilidade da camaradagem de caserna, pelo esforço metódico de planeamento ao milímetro, pelo fulgor das fardas rutilantes, pela coragem infinda, até à morte. Para um homem fisicamente débil, frequentes vezes doente, emocionalmente inibido, a ordem das fileiras conferia um sentimento de pertença e uma noção de segurança que explicarão, em larga medida, o futuro perfil que Himmler irá imprimir às SS, uma organização que em apenas quatro anos, conquistou 50.000 aderentes – a prova de que, na Alemanha de então, muitos homens sentiam a mesma necessidade de uma “ordem nova”. O Reichsführer-SS dominá-los-á de forma total colocando-os na sua inteira dependência (inclusive, financeira, através de empréstimos particulares em casos de aperto), e impondo-lhes regras minuciosas sobre todos os aspectos das suas vidas. No fundo, dando razão a Hannah Arendt quando esta afirma que o totalitarismo nasce da diluição das fronteiras entre público e privado. A vida privada e familiar de Himmler desparece quase por completo à medida que ia aumentando o seu poderio, como, aliás, o filme-documentário de Vanessa Lapa o mostra de forma inequívoca. Longerich afirma mesmo que, a dada altura, “Himmler já quase não tinha vida privada”. Os seus subordinados também não. Himmler aprovava os casamentos dos SS, após ter examinado em detalhe a estirpe dos noivos; estabelecia um rito nupcial distinto do da Igreja, que incluía a leitura de trechos Assim Falava Zaratrusta, de Nietzsche; substituía o baptismo cristão pela “cerimónia de consagração do nome” (Namensweihe), em que se liam ou cantavam em coro passagens de Mein Kampf; impunha que os militantes mais antigos usassem o anel com a caveira no dedo anelar da mão esquerda; regulava os hábitos de consumo de álcool ou tabaco, bem como os convívios de diversão nocturna, apelidadas de “noites de camaradagem”, animadas por “canções calorosas”; instituía um cerimonial próprio para os seus funerais, encomendando mesmo “esboços para caixões de bom gosto” (em 1942, as SS aprovaram as “Recomendações para a Realização de Cerimónias Fúnebres”); excluía das honras fúnebres aqueles que se tivessem suicidado, apelidando-os de “flores de estufa da República de Weimar”.
À semelhança de muitos outros dirigentes nazis, Himmler emerge na confluência de uma “personalidade autoritária” e de circunstâncias históricas conjunturais que lhe permitiram concretizar a sua desmedida vontade de poder. Desde logo, soube aproveitar, com eficácia letal, a queda em desgraça das SA de Ernst Röhm, em parte devido à homossexualidade do seu líder, que a imprensa da oposição divulgara publicamente, mas sobretudo por as SA não passarem de um bando de rufias de rua, oriundos das classes média-baixas e dos círculos operários, que não hesitavam em entrar em conflito com o partido, um contraste nítido com a rígida disciplina, o esprit de corps e o aprumo elitista das SS (um pormenor elucidativo: os membros das SS, maioritariamente recrutados no sector terciário e dos quais apenas 10% trabalhavam na agricultura, além de terem no mínimo 1,70m de altura, se não ostentassem brasão de família eram instados a conceber e a adoptar um).
Por outro lado, e apesar de alguns desaires e reveses, Himmler foi criando sucessivamente, a um ritmo alucinante, novas esferas de poder, muitas vezes com a conivência de outros dirigentes nazis (por exemplo, em 1934 Göring transfere para Himmler os seus poderes enquanto chefe da Gestapo, um ponto de viragem decisivo). A busca de poder terá sido a razão principal para arquitectar a “Solução Final”, que, segundo Longerich, não seria o fim de nada, mas antes o ponto de partida para uma “nova ordem” sangrenta no continente europeu. Mais do que um programa sistemático de extermínio em massa, a Endlösung constituiu, na perspectiva pessoal do Reichsführer-SS, um dispositivo de engrandecimento do seu poder e da sua influência. Talvez por isso, movido pela necessidade de garantir equilíbrios de poder no interior do Reich (v.g., com as forças armadas “convencionais”), Hitler arredou-o em 1942 dos planos de ocupação do Leste, um vexame que o deixaria destroçado e irremediavelmente ressentido. No entanto, Adolf Hitler está, de algum modo, ausente desta biografia, o que constitui talvez a única debilidade a apontar ao livro, porquanto o leitor fica sem saber ao certo onde começava e terminava o poder do Reichsführer-SS, qual a sua verdadeira autonomia de decisão. É um facto que o líder das SS frequentemente invocava o nome do Führer para reforçar o peso das ordens e directivas que emitia (por exemplo, sobre a Teoria do Gelo Cósmico ou os filhos ilegítimos). Todavia, nem sempre terá contado com o apoio explícito de Hitler, cuja autoridade deve ter sido evocada abusivamente em inúmeras ocasiões. A questão é fundamental, na medida em que, tendo em conta aquilo que sabemos do III Reich e do nazismo – ou, melhor dizendo, aquilo que julgamos saber –, a ideia de uma liderança unipessoal tirânica, omnipresente e omnisciente, pode levar-nos a crer que o Führer estava a par e ao corrente de tudo, ou conhecia todas as decisões dos seus subordinados ao mais ínfimo pormenor. Sem intuitos desculpatórios – longe disso –, tal não corresponde à realidade vivida no Reich, motivo acrescido para que, numa biografia de um dos principais dirigentes do nazismo, seja essencial percebermos que grau de autonomia dispunha na sua actuação, até para nos interrogarmos sobre se, a dado momento, o Führer não ficou enredado nas teias de um colossal aparelho de segurança que, visando protegê-lo, acabou por o aprisionar. À medida que o tempo avança, sobretudo nos últimos anos da guerra, a dependência de Hitler face às SS é patente, inquestionável – o que não significa, de modo algum, que personalidades como Himmler ousassem questionar a sua autoridade ou dar mostras de deslealdade ao Führer. Nos derradeiros momentos, Himmler tentou salvar a pele, apelando ao conde Bernardotte para intermediar negociações de paz com os Aliados, à revelia do Führer; ao saber disto, Hitler renegou-o para sempre, sentindo-se atraiçoado. Mas, acima de tudo, o Reichsführer-SS atraiçoou-se a si próprio: ele, que proclamara como divisa das SS a total obediência a Hitler, se necessário com o sacrifício da própria vida, acabou por se escapulir como um rato amedrontado, fazendo-o ademais de um modo canhestro e amador, pouco condizente com o profissionalismo das SS; ele, que sempre condenara os suicidas, poria termo à sua vida esmagando uma cápsula de cianeto, num ranger de dentes.
Não nos devemos esquecer que Heinrich Himmler era, acima de tudo, um oportunista motivado por um cego desejo de poder, alguém que para alcançar os seus objectivos não hesitava sequer em sacrificar antigos mentores e patronos, como Ernst Röhm ou Gregor Strasser. Mais do que isso: como bem assinala Longerich, o Reichsführer-SS foi adaptando a doutrina e os princípios da “sua” organização não a convicções pessoais, mas às circunstâncias do seu percurso de vida, nomeadamente quando se separou da mulher e se envolveu com a sua secretária, Hedwig Potthast, de quem teve dois filhos. O divórcio de membros da SS, por exemplo, passou a merecer a sua “absoluta compreensão”, dizia. Neste particular, um dos aspectos mais interessantes desta biografia, até por não ser suficientemente realçado em obras congéneres de autores anglo-saxónicos (por ex., na igualmente volumosa biografia de Himmler, da autoria do prolífico Peter Padfield), reside nos atritos que se abriram com a Igreja. Oriundo de uma família burguesa, católica e conservadora, e com pretensões de ascensão social (não por acaso, o príncipe Heinrich da Baviera será o seu padrinho de baptismo), Himmler romperá com a Igreja e com a religião em geral, incluindo grupos como as Testemunhas de Jeová, cujos membros foram atrozmente torturados e mortos pela Gestapo. Nas suas palavras, o cristianismo era o “destruidor de todos os povos” e os sacerdotes constituíam uma “sociedade homossexual e erótica, que aterroriza a humanidade há 1800 anos”. Sintomaticamente, Himmler destaca-se, a par de Rudolf Hess, Martin Bormann e Alfred Rosenberg, na defesa de uma atitude de “linha dura” contra a Igreja, a qual passaria pela denúncia ou pelo incumprimento da Concordata celebrada em 1933 entre o Estado nazi e o Vaticano, um choque que a encíclica Mit brennender Sorge, emitida por Pio XI em 1937, iria aprofundar de forma irreversível. Nos alvores da década de 1920 não eram apenas o horror às grandes metrópoles, o anti-semitismo, o ódio à Maçonaria ou a homofobia que marcavam o seu pensamento confuso e sincrético; também o antijesuitismo caracterizava o ideário de Himmler, que em 1923, o ano em que abandonou a fé católica, escreveu: “para mim está mais claro do que nunca que a expulsão dos jesuítas do país foi uma das melhores e mais correctas atitudes tomadas por Bismarck”. Em diversas ocasiões, louvará as vítimas da Igreja e da Inquisição, enaltecendo os hereges e chegando ao ponto de acreditar que uma sua antepassada fora queimada como bruxa. A organização das SS aprofundará o confronto com a doutrina da Igreja. É certo que atacou a homossexualidade e o aborto, instituindo, em Outubro de 1936, o Centro do Reich para o Combate à Homossexualidade. Fê-lo, no entanto, sobretudo por razões eugénicas e raciais. Em simultâneo, mostrava-se cada vez mais tolerante quanto às relações sexuais pré-matrimoniais e aos nascimentos ilegítimos, defendendo que fossem tratados, pasme-se, “com generosidade germânica”. Como sagazmente refere Peter Longerich, a “flexibilidade de ligar ideologia e política de poder era a sua verdadeira força”.
Entrementes, loucuras: além da expedição ao Tibete, planos para viagens científicas à Bolívia, ao Peru e ao Chile, visando comprovar a Teoria do Gelo Cósmico (o início da guerra suspenderia a expedição sul-americana); a obsessão pelos samurais e pelo seu código de honra (segundo ele, as SS deveriam transformar-se nos “samurais alemães”, ideia aprovada por Hitler); o fascínio pelos Cavaleiros Teutónicos e pelas divindades nórdicas, mesclado com uma atracção por círculos esotéricos, mitos e lendas, cultos pagãos ancestrais, escavações arqueológicas na busca de antigas runas e outros signos da germanidade. O que aqui existe de espantoso, inalcançável, é o facto de se ter colocado uma racionalidade organizativa extrema ao serviço de fantasias que se encontravam muito para lá de qualquer domínio racional.
A publicação de um livro desta dimensão, o seu conteúdo e estilo vocacionados para o “grande público”, o seu previsível destino como oferta de Natal, tudo suscita a questão de saber se não estamos em presença de uma “normalização” mercantil do nazismo, visando, em larga medida, satisfazer a curiosidade mórbida de muitos leitores. O ponto foi discutido há pouco, com uma abordagem que peca pelo exagero, num interessantíssimo livro de Gavriel D. Rosenfeld, Hi Hitler! How the Nazi Past is Being Normalized in Contemporary Culture, de 2015. No que se refere à obra de Longerich, a resposta é claramente negativa. O que motiva o público a adquiri-la e a lê-la é algo que mereceria uma discussão à parte e mais vasta. Quanto a este livro, o que importa afirmar, tão-só, é o valor intrínseco de uma obra de natureza histórica, produto de uma investigação laboriosa de cerca de dez anos.
Em suma, Heinrich Himmler, de Peter Longerich, pode não ser a biografia “definitiva” do líder das SS. Mas é uma obra dificilmente ultrapassável: na profundidade da investigação realizada, no rigor historiográfico irrepreensível, na escrita directa, límpida e cativante. Em todos os sentidos, um grande livro.