Exaustão atinge mais os jovens médicos e os que trabalham no SNS

Estudo sobre burnout na classe médica indica que dois em cada três clínicos portugueses estão exaustos. "O sistema está a criar todas as condições para que haja um maior risco de acontecerem erros médicos", diz bastonário.

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Para a Ordem, o risco de erros médicos é uma das consequências do cansaço MARIA JOAO GALA

A fórmula “perfeita” para os médicos portugueses entrarem em burnout — um termo que define o stress profissional crónico — está reunida. Dois em cada três clínicos apresentam níveis de exaustão emocional elevados. Além disso, 38,9% dos médicos revelam também um grau de distanciamento em relação aos doentes que é considerado alto e 30,6% assumem um grande decréscimo da sua realização profissional. Estes três ingredientes estão a atingir de forma transversal os médicos portugueses, mas os mais jovens e os que trabalham apenas no Serviço Nacional de Saúde (SNS) parecem ser os mais afectados.

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A fórmula “perfeita” para os médicos portugueses entrarem em burnout — um termo que define o stress profissional crónico — está reunida. Dois em cada três clínicos apresentam níveis de exaustão emocional elevados. Além disso, 38,9% dos médicos revelam também um grau de distanciamento em relação aos doentes que é considerado alto e 30,6% assumem um grande decréscimo da sua realização profissional. Estes três ingredientes estão a atingir de forma transversal os médicos portugueses, mas os mais jovens e os que trabalham apenas no Serviço Nacional de Saúde (SNS) parecem ser os mais afectados.

Os dados fazem parte do estudo nacional Burnout da Classe Médica, apresentado nesta segunda-feira na Ordem dos Médicos, em Lisboa. O trabalho, conduzido pelo Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, teve como base um inquérito online. A Ordem tem 49.152 médicos inscritos, mas apenas os clínicos no activo e com email válido foram contactados (43.983). Destes, 29% responderam — o que segundo Jorge Vala, investigador do ICS e coordenador do trabalho, é um valor muito superior ao encontrado nos grandes estudos internacionais.

Foram avaliados três grandes blocos que se considera serem indicadores de burnout: a exaustão emocional (traduz-se em cansaço físico e psíquico perante o trabalho), o afastamento em relação aos doentes (tecnicamente conhecido como despersonalização e que, na prática, se traduz em atitudes e sentimentos de frieza e distância face aos doentes) e a diminuição da realização profissional. Os valores encontrados surpreenderam tanto a equipa do ICS como a Ordem dos Médicos, sobretudo no que diz respeito à exaustão.

Jorge Vala dá como exemplo que no grande estudo de referência nos Estados Unidos apenas 38% dos médicos revelavam uma exaustão emocional alta, enquanto por cá já são mais de 66%.

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“Não há dúvidas de que esta é uma realidade que ultrapassa a nossa percepção e a nossa antecipação. Ficamos ainda mais preocupados. Com médicos com níveis tão altos de exaustão emocional todos nós percebemos que isso coloca obstáculos à capacidade de exercerem a sua profissão com a máxima qualidade, particularmente em situação de stress como é o caso das urgências”, corrobora o bastonário da Ordem dos Médicos, José Manuel Silva. Quanto a especialidades, os médicos mais exaustos são os de hematologia clínica, radioterapia e oncologia. Do lado oposto estão os profissionais de saúde pública, cirurgia pediátrica e medicina do trabalho.

Ansiedade e depressão

Houve também 40% de inquiridos que denotaram sintomas de ansiedade e 70% sintomas de depressão — os investigadores do ICS ressalvam que estes sinais não são sinónimo de diagnóstico, ainda que sejam importantes para fazer o retrato da classe, sobretudo no caso da ansiedade que surge muito associada ao burnout. Para José Manuel Silva, os profissionais também “estão a ser vítimas do que está a acontecer no SNS e do seu dramático subfinanciamento”.

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Aliás, os investigadores tentaram perceber que factores conduziram os médicos à exaustão, ao afastamento face aos doentes e à menor realização profissional. A falta de recursos humanos e físicos nos hospitais e centros de saúde, as exigências dos horários de trabalho e a falta de descanso surgiram como os principais responsáveis.

Esta degradação foi esmagadora no sector público, por oposição ao privado. Cerca de 70% dos inquiridos trabalham na Função Pública e 30% no privado. “Os resultados que apresentámos revelam que, efectivamente, são os médicos que trabalham no sector público — não aqueles que trabalham no privado ou que acumulam trabalho nos dois sectores — os que têm maior risco de desenvolvimento destes indicadores de burnout”, sintetiza Alexandra Marques Pinto, também da equipa científica do ICS.

Mais risco de erros médicos

O bastonário alerta ainda para outra consequência: “Quando acontece algum erro médico todos apontam o dedo aos profissionais, mas o sistema está a criar todas as condições para que haja um maior risco de acontecerem erros médicos com prejuízo dos doentes, precisamente pela sobrecarga e o estado a que estão a conduzir os profissionais.”

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São os médicos que relatam mais distância e menos empatia face aos doentes que mais admitem também que correm o risco de cometer erros. Em 13% dos casos os participantes mostraram uma “maior percepção de erros na sua prática médica relativamente a fases prévias da sua actividade profissional, o que nos faz pensar que a despersonalização, enquanto indicador de burnout, constitui um factor de risco acrescido e que é percepcionado como tal pelos próprios médicos”, acrescenta Alexandra Marques Pinto.

A investigadora salienta que as conclusões são transversais a toda a classe, mas com algumas diferenças. Os níveis mais elevados de exaustão emocional são encontrados nas mulheres. Já a despersonalização é mais comum nos homens — o que, aliás, está em linha com estudos semelhantes feitos noutros sectores de actividade.

Para responder às questões que lhes foram colocadas, os médicos foram convidados a usar uma escala, que variava entre “0 e 6”, com os valores mais elevados a significarem um maior risco de burnout. Foi na faixa etária até aos 35 anos e dos 36 aos 46 que se verificaram os valores mais elevados de exaustão, despersonalização e diminuição da realização profissional.

Uma realidade que não surpreende José Manuel Silva, que diz que a Ordem tem alertado para a pressão a que os jovens médicos estão sujeitos, até por serem os que mais horas fazem em serviços onde estão sujeitos a mais stress, como as urgências. Espera, por isso, que este estudo sirva para que os responsáveis do Ministério da Saúde repensem as actuais políticas.

Outros dados:

— Ter filhos pequenos é factor de risco

Quanto os investigadores do ICS tentaram identificar os antecedentes do estado de exaustão emocional a que chegam os médicos, perceberam que há factores que estão para lá da prática profissional. Assim, os médicos com filhos pequenos revelaram níveis mais elevados de exaustão.

— Má avaliação das chefias tem impacto

Em muitos dos casos de exaustão, os clínicos encontraram relatos de desacordo dos médicos com o tratamento que era dado pelas chefias aos vários elementos das equipas. O mesmo foi referido pelos médicos que revelaram afastamento em relação aos doentes. Em ambos os casos, os participantes também mostraram identificar-se cada vez menos com a classe.

— Cansados, mas envolvidos nas tarefas

Mesmo com o stress a que estão sujeitos, os médicos que responderam ao questionário mostraram que, apesar da elevada exaustão, continuam a estar muito envolvidos com as tarefas no local de trabalho e que respondem na mesma aos desafios. Foram os clínicos mais velhos aqueles que mostraram níveis mais elevados de envolvimento. Os médicos de hematologia e de radioterapia, que surgem como os mais exaustos, são paradoxalmente dos mais envolvidos.

— Enfermeiros também estão exaustos

O cansaço reportado pelos médicos não é um exclusivo da classe. Um estudo da Universidade do Minho publicado neste mês numa revista científica também indicava que um em cada cinco enfermeiros apresenta um estado de exaustão emocional significativo. A investigação  identificou igualmente que 86% dos profissionais de enfermagem trabalham com níveis de stress muito elevados ou moderados. Mais uma vez, o excesso de trabalho, as questões relacionadas com a carreira e a remuneração, e a relação com os próprios doentes surgem à cabeça como os principais pontos que estão a conduzir a esta realidade e a potenciar mais falhas nos cuidados que são prestados aos doentes.