Com Elza Soares até ao fim
O último dia de Vodafone Mexefest foi o dia de Elza Soares. Um concerto histórico feito de ternura e denúncia, de vida vivida e desejo de futuro. Perante ela, tudo o resto se eclipsou no festival que, ao longo de dois dias, recebeu 15 mil espectadores na zona lisboeta da Avenida da Liberdade.
Quase imóvel no seu trono negro, cabeleira roxa brilhando no alto e vestido preto frisado estendido até à boca do palco, Elza Soares está viva, vivíssima nos seus quase oitenta anos. Elza Soares, lenda do samba, lenda da música brasileira, mulher do mundo inteiro, mulher do fim do mundo, aterrou no Coliseu dos Recreios, dia 26 de Novembro, e eclipsou tudo em seu redor. Nas redondezas da sala histórica lisboeta decorriam em vários outros palcos os muitos concertos do Vodafone Mexefest. Como sexta-feira, no primeiro dia do festival, como este sábado, concertos foram às dezenas. Bons concertos, assinale-se, quer antes, quer depois de Elza.
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Quase imóvel no seu trono negro, cabeleira roxa brilhando no alto e vestido preto frisado estendido até à boca do palco, Elza Soares está viva, vivíssima nos seus quase oitenta anos. Elza Soares, lenda do samba, lenda da música brasileira, mulher do mundo inteiro, mulher do fim do mundo, aterrou no Coliseu dos Recreios, dia 26 de Novembro, e eclipsou tudo em seu redor. Nas redondezas da sala histórica lisboeta decorriam em vários outros palcos os muitos concertos do Vodafone Mexefest. Como sexta-feira, no primeiro dia do festival, como este sábado, concertos foram às dezenas. Bons concertos, assinale-se, quer antes, quer depois de Elza.
O rock 'n' roll nublado e dylanesco de Kevin Morby, a soul e R&B do Gallant da voz impressionante a caminho do estrelato, a delicadeza de Mallu Magalhães, a surpresa de receber os Whitney em modo duo quase acústico, a celebração funk e hip hop dos Digable Planets, os ritmos quebrados de Branko, com Mayra Andrade, saída do seu próprio concerto, como convidada surpresa no encerramento do festival. Tudo bom, tudo merecedor de distintos elogios. Mas Elza Soares? Elza Soares deu um concerto para a História. Viva, vivíssima, vivida.
Já muito aconteceu. Já estamos no fim do encore quando desce a cortina pela última vez e, enquanto tal acontece, enquanto uma sala aplaude – por ela, certamente, mas também por nós, privilegiados que nos encontrámos nela e com ela –, Elza promete que voltará. Afirma e repete que isto é só o início, que o futuro ainda reserva muito mais para ela e seus “irmãos moleques”, ou seja, o grupo de músicos que a acompanha, liderado pelo baterista e compositor Guilherme Kastrup. Foi ele que, em reportagem à volta de A Mulher no Fim do Mundo, o seu álbum mais recente e aquele que apresentou no Coliseu, nos disse há uns meses que “cada vez que ela canta é como se estivesse cantando pela primeira e pela última vez”. Como testemunhou o público que a viu na Casa da Música, no Porto; como testemunhou quem a acompanhou no Sons em Trânsito, em Aveiro, como vimos no Coliseu, no último dos seus três concertos portugueses, Kastrup não nos mentiu.
A primeira vez, o princípio e o fim de tudo, é aquela voz que se impõe sem qualquer acompanhamento, cantando a início o poema Coração do mar, de Oswald de Andrade, que inicia A Mulher do Fim do Mundo. É aquela vez derradeira, o fim e o princípio de tudo, banda em silêncio, de costas para o público e rosto virado para Elza quase no final do concerto, em que ela entoa os versos de Comigo – “Levo minha mãe comigo, pois deu-me seu próprio ser”. A primeira vez e a última vez, repitamos, é aquilo que cantou e como cantou, com a extraordinária banda que a acompanhava, ao longo da cerca de hora e meia de concerto.
Coração batendo no samba, antenas sintonizadas no mundo vasto, os jovens paulistas criaram para a diva carioca música de uma hibridez gloriosa e desconcertante. Gloriosa porque nos convoca, generosa e popular, a que nos juntemos a ela. Desconcertante porque reflecte um mundo convulsivo onde convivem amor e violência, ruído e placidez, esgares odiosos e abraços fraternos. Concretizando, balanço samba e neurose pós-punk, electrónica corrosiva e tropicalismo luxuriante, passado e futuro unidos até um se tornar indistinguível do outro. Já o sentimos ao ouvir aquele que é, indiscutivelmente, um dos álbuns do ano, mas o concerto torna-o ainda mais evidente pela crua sensibilidade da interpretação da banda. E depois, ou melhor, antes, Elza.
A Elza Soares que põe um Coliseu inteiro a cantar a frase-chave dessa extraordinária canção combate contra a violência doméstica, Maria da Vila Matilde – “Você vai se arrepender de levantar a mão p'ra mim”. A quase octogenária, presa ao cadeirão pela fragilidade física, que, logo de seguida, celebra o amor carnal com fervor e naturalidade – “Unhas cravadas/ em transe latejo/ roupas jogadas no chão”, dizem os versos; “Pra fuder”, diz o refrão, duas palavras estendidas e distendidas até se tornarem bailado fonético na garganta da cantora.
Elza Soares é aquela que denuncia que “a carne negra é a mais barata do mercado” (canção-manifesto retirada do álbum do seu último renascimento, Do Cóccix até ao Pescoço, editado em 2002); e também a que incita “quero barulho, não quero ninguém parado, ninguém calado”; e que elogia com humor, em português de Portugal, “isso é altamente fixe”. Ela mesma, a que chama até si Rubi, cantor e bailarino que, depois de interpretarem juntos Benedita, chamou até si para lhe sussurrar, desarmante, os versos de Malandro – “Poderosa!”, gritam da plateia, e ela, sorridente, agradece.
Elza Soares, uma vida inteira atrás de si e ainda a procurar, a arriscar, a querer mais. Ainda há tanto para fazer, né? “Até ao fim, eu vou cantar/ Me deixem cantar até ao fim”, ouvimo-la – e o concerto estava apenas no início.
De Miles a Dylan
Lá fora, nas ruas a céu aberto, o cenário transformara-se em relação a sexta-feira. O lufa-lufa do público em deambulação era o mesmo, mas a chegada da chuva tornara o público mais homogéneo. A organização disponibilizou impermeáveis a quem fora apanhado desprevenido, e foi ver a Rua das Portas de Santo Antão e a Avenida da Liberdade polvilharem-se de gente coberta de plástico branco no costumeiro passo acelerado.
Protegidas da chuva no percurso, viram Kevin Morby, nova coqueluche do rock americano, fazer jus à condição. Na Estação do Rossio, espaço repleto para ouvir o Dylan convertido ao power pop de Dorothy ou essa belíssima Miles, miles, miles, que arranca como balada espectral que Roy Orbinson poderia ter inventado e termina em viagem auto-estrada fora com Springsteen no lugar do pendura. Da pungência de cantautor ao abandono de jam rock 'n' roll é um pequeno passo que Morby e a banda mostram saber dar sem qualquer dificuldade – foi um prazer vê-los fazerem-no.
Tal como foi encontrarmos antes dele, no Coliseu, um cantor, Gallant, fadado ao estrelato. O R&B é a sua linguagem e a voz virtuosa e a energia da actuação impressionam. O autor de Ology, álbum editado este ano, aprendeu as lições de sedução do Marvin Gaye tardio, tem Prince na ponta da língua e Drake ou Miguel na mira. É um clássico moderno em construção, assim consiga moderar a queda ocasional para as formas genéricas que enxameiam a produção industrial do R&B contemporâneo.
Ao longo da noite, confirmou-se também que os Whitney são mesmo a nova banda preferida de muita gente – Julien Ehrlich e Max Kakacek tocaram em versão duo de voz e guitarra num Tivoli lotado, explicaram que andam por Lisboa a preparar o novo álbum, e a luminosidade, disse quem assistiu, não se perdeu com o despojamento da apresentação.
Enquanto isso, Mayra Andrade actuava no Capitólio, Fuse, o histórico MC dos Dealema, encerrava com a sua voz grave e beats densos a noite hip hop na Garagem EPAL, e os Digable Planets tornavam redundante a presença de cadeiras na plateia do São Jorge: tudo em pé, tudo unido na batida da banda de Rebirth of slick (Cool like dat), tudo a celebrar o hip hop enquanto matéria construída de partículas jazz e groove funk inatacável.
O Vodafone Mexefest despedir-se-ia com os Irmão Makossa a bambolear no sótão do Tivoli e com um Coliseu repleto a bambolear igualmente com Branko no comando das operações, e Mayra Andrade, mesmo no fim, como convidada especial. Depois do frenesim rítmico (afro-house, kuduro-techno, kwaito-funk, tudo isso e nada disso exactamente), diminuíram as rotações e despediram-se com a brisa temperada de Reserva pra dois.
Em 2016, o Vodafone Mexefest foi o festival que conhecemos. Abriu uma zona histórica da cidade, seu habitat desde sempre, à musica e aos espectadores que a vieram ouvir. Durante dois dias, 15 mil (números avançados pela organização) reencontraram e descobriram bandas e músicos, reentraram em espaços habitualmente frequentados e descobriram alguns novos, como o reaberto Capitólio ou o sótão do Tivoli. Mas, em 2016, o Vodafone Mexefest deixa uma marca na memória mais profunda do que todas as outras. Foi neste ano que vimos Elza Soares apresentar A Mulher do Fim do Mundo. Cantaremos com ela. Até ao fim. Como se fosse a primeira e a última vez.