Uma Babilónia morna

Os júris do prémio Renaudot tinham-nos habituado a celebrar obras bem mais marcantes, polémicas e surpreendentes, até mesmo mais virtuosas, do que Babylone, de Yasmina Reza.

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A força de Babylone provém da sua capacidade de transfigurar o morno e cinzento quotidiano das personagens TOM MAELSA/AFP

Yasmina Reza ficou famosa em todo o mundo devido às suas peças de teatro, nomeadamente Arte (que recebeu os prémios Tony e Molière). E a partir de agora ficará ainda mais conhecida, pois o seu romance Babylone acabou de receber o prémio Renaudot. A autora de 57 anos, extremamente discreta e recatada, evitando ser entrevistada ou fotografada, tinha sido notada em 2007, aquando da edição de Madrugada, Tarde ou Noite, em que narrava a campanha eleitoral de Nicolas Sarkozy que tinha acompanhado ao longo de um ano.

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Yasmina Reza ficou famosa em todo o mundo devido às suas peças de teatro, nomeadamente Arte (que recebeu os prémios Tony e Molière). E a partir de agora ficará ainda mais conhecida, pois o seu romance Babylone acabou de receber o prémio Renaudot. A autora de 57 anos, extremamente discreta e recatada, evitando ser entrevistada ou fotografada, tinha sido notada em 2007, aquando da edição de Madrugada, Tarde ou Noite, em que narrava a campanha eleitoral de Nicolas Sarkozy que tinha acompanhado ao longo de um ano.

A força do romance Babylone provém da sua capacidade de transfigurar o morno e cinzento quotidiano das personagens vitrificadas numa mediocridade absolutamente houllebecquiana. Elisabeth, a narradora, uma engenheira de 62 anos, e o seu marido decidem organizar uma festa para uma dezena dos seus amigos. Falta-lhes tudo: copos, cadeiras, entram em pânico. Ela tem uma ideia: pedir ajuda aos vizinhos do andar de cima, um casal estranho, bizarro, tanto a nível da aparência como intelectualmente. Yasmina Reza transporta o leitor de um casal para o outro, remexe na intimidade das suas vidas e dos seus estados de alma, expõe as suas manias e os seus pormenores físicos um pouco ridículos, pinta retratos de um realismo cruel dos convidados da festa, traça os percursos das suas vidas, tece os laços afectivos e as falhas que os unem, separam, perturbam, cimentam as existências desta comunidade de típicos franceses dos subúrbios. Os destinos deles entrecruzam-se, criando uma espécie de desordem e confusão: a morte da mãe da narradora, a falhada adopção do filho da vizinha por parte do seu marido, a abortada carreira de cantora da dita vizinha, a irmã que descobre muito tardiamente a sexualidade sado-masoquista…          

Mas esta aparente confusão acaba por se esclarecer, tomar uma direcção definida, um caminho mais limpo: o caminho do drama. Ao sair da festa de Elisabeth, o estranho vizinho, ligeiramente alcoolizado, estrangula a sua mulher, e depois, a meio da noite, vai tocar à porta de Elisabeth, pedindo-lhe que o ajude a transportar o cadáver. Inicia-se então todo um novo exercício de estilo, oscilando entre a frieza das descrições quase clínicas da cena do crime e do corpo, e a ebulição das tristes paixões que levam aquelas pessoas a dar por si às cinco da manhã nas sórdidas escadas do prédio, com um cadáver dentro de uma mala. Segue-se o inquérito da polícia e as consequências que provoca nas personagens, até no gato e nas plantas do vizinho. 

Yasmina Reza exprime com nitidez aquilo que todos nós sentimos quando estamos sentados na nossa cadeira: as impressões difusas que surgem sem aviso, que nos rodeiam, nos afundam num abismo de melancolia, uma agitação de saudade tão aguda como fugaz, e que se desvanecem sem que alguma vez os consigamos explicar ou exprimir. Uma imagem, um objecto, uma palavra ou um cheiro que desencadeiam esses acessos de infinita tristeza: “Não consegui lutar contra a sensação de abandono e a escuridão que se abatem quando um lapso de tempo se completa e se fecha. Já não há Manoscrivi [os vizinhos] por cima de nós. Os Manoscrivi eram a ordem familiar das coisas. Sei bem quanto isso pode parecer risível face ao que acontece pelo mundo. Mas o que desapareceu convosco é uma coisa visível, na qual não se pensa, é a vida evidente e óbvia.” (extracto de “Babilónia”)  

Babylone transborda também de passagens ácidas e divertidas, escritas numa linguagem familiar e por vezes a roçar a grosseria e a vulgaridade, passagens de alguma forma conseguem funcionar. O livro fala-nos da cobardia, desses ataques de loucura que perpassam pelos seres mais banais, da procura infrutífera da amizade ou do aconchego quente do amor. O romance lê-se facilmente, a história é fluida, mas as tentativas de dar espessura aos protagonistas acabam por colidir com a sua mediocridade e a banalidade do cenário. As vidas pequenas, as vistas curtas e um assassínio, que afinal acaba por não passar de um drama bastante comum.

Os júris do prémio Renaudot tinham-nos habituado a celebrar obras bem mais marcantes, polémicas e surpreendentes, até mesmo mais virtuosas. Alguns livros foram, de forma inesperada, retirados da lista final de nomeados, como se a coroação da obra de Yasmina Reza fosse uma verdadeira surpresa. De qualquer forma, é uma obra a ler, pela sua eficácia e pelas suas fulgurantes introspecções. E deve-se notar, porque é caso raro: os prémios Goncourt e Renaudot foram este ano entregues a quatro mulheres nas categorias de romance e ensaio.