O jazz de Bica são melodias que se cantam
Carlos Bica comemora os vinte anos sobre o primeiro disco do trio Azul com o novo More than This. A música a três não ganhou peso nem se encheu de rugas e continua a ser o melhor retrato do contrabaixista.
Carlos Bica não precisa de uma investigação pericial nem de um teste de ADN para concluir acerca de um dado essencial da sua progenitura: num certo sentido, a sua música começa muitos anos antes com Scott LaFaro, contrabaixista do trio clássico de Bill Evans. Para Bica, LaFaro foi “o emancipador do instrumento”, reapresentando-o ao mundo a partir de uma inaudita natureza melódica. É esse mesmo movimento de libertação que o português procura carregar consigo desde que adaptou como lema, há pelo menos 20 anos, a ideia de que “não se deve vestir a pele do instrumento que se toca” – frase frequente na sua boca, significando que o contrabaixo, a bateria ou a guitarra, para exemplificar com a formação do seu trio Azul, não devem ser donos dos músicos nem apresentar-lhes um itinerário certinho, sem desvios nem enganos. Antes de ser contrabaixista, baterista ou guitarrista, Carlos Bica, Jim Black e Frank Möbus são músicos. O instrumento não deve defini-los. Nem contê-los.
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Carlos Bica não precisa de uma investigação pericial nem de um teste de ADN para concluir acerca de um dado essencial da sua progenitura: num certo sentido, a sua música começa muitos anos antes com Scott LaFaro, contrabaixista do trio clássico de Bill Evans. Para Bica, LaFaro foi “o emancipador do instrumento”, reapresentando-o ao mundo a partir de uma inaudita natureza melódica. É esse mesmo movimento de libertação que o português procura carregar consigo desde que adaptou como lema, há pelo menos 20 anos, a ideia de que “não se deve vestir a pele do instrumento que se toca” – frase frequente na sua boca, significando que o contrabaixo, a bateria ou a guitarra, para exemplificar com a formação do seu trio Azul, não devem ser donos dos músicos nem apresentar-lhes um itinerário certinho, sem desvios nem enganos. Antes de ser contrabaixista, baterista ou guitarrista, Carlos Bica, Jim Black e Frank Möbus são músicos. O instrumento não deve defini-los. Nem contê-los.
É talvez essa essência, acompanhada de uma óbvia predisposição melódica conjunta, que faz do trio Azul um caso singular. Desde o inicial Azul (1996) que o seu reportório se guia pela “procura da canção perfeita” – que Carlos Bica assume como uma característica sua, mas facilmente extensível a Black e Möbus –, “transformada, sem permanecer fiel a um formato pop”. Bica já sabia que a química entre os três era algo de muito particular quando recebeu o convite para gravar o seu primeiro disco. Era só disso que estava à espera para levar os outros dois consigo para estúdio, depois de se terem conhecido na Alemanha. Só não fazia ideia de que depois viria um segundo ou um terceiro, e que chegado a 2016 estaria a comemorar os 20 anos desse registo com a edição de um sexto álbum, More than This – apresentado sexta-feira na Culturgest, em Lisboa, e sábado no Festival de Jazz da Marinha Grande.
A suspeita de que os três poderiam estar a pisar chão firme – e não a juntar mais uma paragem num apeadeiro semelhante a qualquer outro – pode muito bem ter chegado quando, pouco depois da gravação de Azul, Jim lhe disse “Man, I’m alway singing your melodies”. Era um sinal evidente de que no centro da música partilhada pelos três estava um compromisso comum com cada canção, em que os egos ficavam de castigo e eram trancados do lado de fora. More than This existe nesse mesmo jogo vindo de trás, entregue a um lirismo distendido ou a súbitos espasmos de rock, que Bica acredita poder ser resumido quase na perfeição pelo tema Wattenmeer.
“Wattenmeer [Frísio] é um mar que existe no norte da Alemanha”, explica, “em que, devido à superfície costeira ser muito plana, as marés vazias são enormes, pode andar-se por quilómetros. Mas depois quando a maré enche aquilo é perigoso.” O título, sugerido por “uma senhora alemã” que assistiu à estreia do tema no Hot Clube, cola-se à matriz musical de Bica: “a existência de espaço, o desenvolvimento do tema, o crescendo de emoção e, no final, uma parte rockeira”. Entre o impressionista e o agressivo, diz, qualidades que, às tantas, se confundem.
Quando há oportunidade
Carlos Bica podia ter passado a vida à procura dos músicos certos para veicular a sua música ou até optado por saltitar constantemente de formação em formação para se desafiar enquanto compositor e forçar-se a transpor portas desconhecidas. Em vez disso, o trio Azul tornou-se a principal vitrina das suas composições, o seu grupo mais estável e aquele que simboliza e acompanha o seu percurso de autor e intérprete. Bica acertou à primeira e, com a passagem dos anos, percebeu que o equilíbrio a três era uma equação tão sólida quanto frágil. “Ao fim de meia dúzia de anos, e com o Jim a viver em Nova Iorque – o que fazia com que fosse sempre complicado vir até à Europa –, cheguei a tentar vários outros bateristas”, confessa. “As músicas eram bem tocadas, mas a química era diferente. E foi então que decidi que o trio toca quando houver oportunidade, senão não toca.”
Essas experiências frustradas levaram Bica a tornar-se mais exigente com qualquer formação em que aceite participar e na valorização absoluta que faz do contributo de cada instrumentista, dizendo estranhar como “em algumas formações os músicos são uma peça facilmente substituível”. Os três estão tão sincronizados que, ao contrário do que é habitual no jazz, raras vezes se deixaram visitar por músicos convidados – Maria João e Ray Anderson participaram no disco de estreia, ajudando a apresentar o trio; depois disso, só em Believer o gira-disquista DJ Illvibe, filho do admirável pianista Alexander von Shlippenbach, se imiscuiu na dinâmica a três. Bica diz sentir “o trio como um triângulo mágico”. “Eu, o meu ouvido esquerdo e o meu ouvido direito. Um triângulo em que é muito fácil de ouvir, de comunicar. Para mim, a diferença entre trio e quarteto é quase como entre quarteto e big band.”
E não custa perceber ao ouvir More than This que não há qualquer necessidade de acrescentar vozes exteriores ao Azul. Ao sexto álbum, a excelência dos músicos continua a não emperrar cada tema, as melodias parecem deslizar nesta dinâmica fácil, a inventividade do conjunto mantém-se de uma soltura pouco acidentada e a longa relação do trio conduz a uma falta de urgência que retira de cena a ansiedade em mostrar serviço. Do tradicional americano Silver Dagger – que Bica descobriu na discografia de Bob Dylan – ao tema popular alentejano Na rama do alecrim – num arranjo recuperado do álbum Vozes do Sul, de Janita Salomé –, a busca pelas canções que caibam no universo de Azul mantém-se elástica e transportadora de uma portugalidade melódica a que Bica acredita não saber escapar. De fora de More than This ficaram uma música em que sentiram estar “a querer soar a uma banda do James Brown”, demasiado agitada e funk para a temperamento sereno do trio, ou uma tentativa pouco conseguida de trilhar os demasiado pessoais Verdes anos de Carlos Paredes.
Ao fim de 20 anos, no entanto, sem acolher quaisquer mudanças radicais, a pele de Azul continua a esticar e a integrar novas paisagens. A vantagem é que, tal como acontecia com o trio clássico de Bill Evans, não são necessárias revoluções quando a receita já está lá desde o início.