Música de costas para a Europa, de frente para o mar
Durante duas noites, o Vodafone Mexefest volta a agitar os dois lados da Avenida da Liberdade, em Lisboa, com dezenas de concertos que obrigam a uma travessia constante. Do cartaz fazem parte Batida, Manuel Fúria e Mayra Andrade, que juntámos para uma conversa sobre lusofonia e identidade.
Em 2013, Pedro Coquenão (Batida) actuou no Quénia, país onde nunca lhe tinha passado pela cabeça que a sua música lhe permitisse aterrar, e espantou-se ao perceber que havia em swahili alguns pontos em comum, algumas palavras mastigadas do português, que resistiram desde que os quenianos viram os lusitanos pela primeira vez nas praias de Mombaça. “Essa memória ficou, tenha ela 500 anos ou não”, reflecte o músico. O sinal, para Pedro, é o de que existe não apenas um espaço da língua, da lusofonia stricto sensu, mas também um espaço emocional, feito de vivências, experiências e cumplicidades que possam ter acontecido num qualquer momento histórico. “O amor que pode circular é a grande coisa”, acredita. “Infelizmente, as lógicas financeiras, as tensões que há cada vez mais nas fronteiras e o mundo desequilibrado fazem com que esse espaço possa tornar-se cada vez mais distante.”
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Em 2013, Pedro Coquenão (Batida) actuou no Quénia, país onde nunca lhe tinha passado pela cabeça que a sua música lhe permitisse aterrar, e espantou-se ao perceber que havia em swahili alguns pontos em comum, algumas palavras mastigadas do português, que resistiram desde que os quenianos viram os lusitanos pela primeira vez nas praias de Mombaça. “Essa memória ficou, tenha ela 500 anos ou não”, reflecte o músico. O sinal, para Pedro, é o de que existe não apenas um espaço da língua, da lusofonia stricto sensu, mas também um espaço emocional, feito de vivências, experiências e cumplicidades que possam ter acontecido num qualquer momento histórico. “O amor que pode circular é a grande coisa”, acredita. “Infelizmente, as lógicas financeiras, as tensões que há cada vez mais nas fronteiras e o mundo desequilibrado fazem com que esse espaço possa tornar-se cada vez mais distante.”
Da mesma maneira que o swahili, também o afrikaans terá repassados alguns vocábulos portugueses, deixando um rasto da passagem portuguesa pela África do Sul, território onde fica o Cabo da Boa Esperança, terra do Adamastor e onde (Durban) Fernando Pessoa viveu nove anos da sua infância. Talvez esse pensamento tenha justificado, em parte, o convite dirigido por Batida ao sul-africano Spoek Mathambo para partilharem o espectáculo que ambos vão protagonizar no Vodafone Mexefest (sexta-feira, 00h00, sótão do Teatro Tivoli), numa sessão dupla de DJ inspirada por uma sala de projecção de cinema. Pedro pensou em Spoek para o acompanhar a partir dessa ideia de amor à solta e empenhado em “mostrar que grandes cidades que não definiam tendências há uns anos, como Luanda, Lisboa, Joanesburgo ou Cidade do Cabo, são aquelas que hoje as definem e que têm uma síntese muito diferente das outras – bebem de Nova Iorque ou de Londres mas têm uma forma de digerir a coisa totalmente distinta”.
Coquenão cita a versão de Spoek Mathambo para Control dos Joy Division, algo entendido como “pouco expectável”, mas que para alguém que viva em Joanesburgo, “rodeado de cimento”, poderá ser bastante mais natural de ouvir do que a música do Soweto. Esse é o outro plano em que a noite a dois pretende também funcionar: nascido em Angola, Pedro constrói entre Lisboa e Luanda a música de Batida com um travo angolano aberto ao mundo, mas sabe que em cima de um palco Mathambo “pode ser o que ele quiser e passar a música que lhe apetecer, Joy Division ou Pixies, que a tez mais escura” lembrará sempre que chegou de África; o homem do projecto Batida, pelo contrário, terá de “ser muito africano” para que a sua pele clara não consiga esconder o facto de ter sido largado no mundo no mesmo continente.
Tradição e identidade
No tempo de desabrochamento dos Joy Divison ou dos Pixies, nesse período largo que em Portugal correspondia ao pós-25 de Abril e ao lento e, paradoxalmente, súbito acordar para o resto do mundo, vigorava no entender de Coquenão “a ideia de que estávamos na parte de trás da Europa e não na parte da frente de nada – estávamos nas traseiras de tudo o que estava a acontecer”. Hoje, acredita que “há todo um potencial de fazer coisas e qualquer outra cidade litoral, à beira do oceano, está à distância de um barco, nada no meio, só peixes e baleias, sem gente – à excepção das ilhas – a fazer música”. Manuel Fúria, que no Mexefest apresentará alguns dos temas do seu segundo álbum com Os Náufragos (sexta, 23h20, Garagem EPAL), concorda que “a nossa vocação natural não é estarmos na cauda da Europa, mas sim na proa e pegarmos o mar de frente”. “Acho que é fundamental a ideia da lusofonia, de haver um território comum, com os sítios por onde Portugal passou e onde inventou coisas novas que hoje existem sob outro tipo de paradigma.”
Fúria fala do Brasil como “um Portugal que resultou, em termos de cultura pop”. Com isso quer dizer que do outro lado do Atlântico foi criada “uma cultura pop autóctone”, algo que diz procurar e que, entende-se nas suas palavras, terá tido nos Heróis do Mar – que ele ouve sempre, desde que aos 21/22 anos compreendeu num supetão tudo aquilo de que era feita a banda de Rui Pregal da Cunha e Pedro Ayres Magalhães – uma faúlha inicial no que respeita à música portuguesa. Assumindo com clareza a sua inscrição numa tradição pop/rock de matriz anglo-saxónica – “por defeito, efeito ou virtude de fabrico, coloco-me no meio dela e faz parte da minha vontade e da maneira como vejo o mundo ter a noção de que não valho grande coisa, sou um pouco insignificante à luz da grandeza de Deus”, diz –, Fúria atribui valor àquilo que lhe é familiar e foi-se acercando, pouco a pouco, de uma síntese que se traduz na assunção de uma honestidade individual e enquanto português que tem por rastilho os anos 80.
“Aquilo que faço é uma continuação, ou uma tentativa de continuação, daquilo que começou nessa época, em que há coisas de que me sinto muito próximo, como os Heróis do Mar, o António Variações, os Sétima Legião, em geral as coisas da Fundação Atlântica e algumas coisas dos Xutos & Pontapés”, concretiza. Interessando-se pelo “potencial de mutação inevitável na tradição quando é assumida e continuada”, confessa preferir sentir-se preso àquilo que conhece e o define de modo essencial a embarcar no “mundo fragmentado, meio atmosférico e nebuloso” que vê à sua volta. Prefere um chão concreto, saber onde tem os pés assentes e cantar para que o vizinho, que fala a sua língua e tem uma história partilhada consigo, o possa perceber. “Mas não construo este discurso todo, não escrevo um manifesto e depois executo”, ressalva. “Faço as coisas como me são naturais.”
Mayra Andrade, do outro lado da mesa de café do Cinema São Jorge em que nos encontramos, um dos centros vitais do Mexefest (a cabo-verdiana actua sábado no Capitólio, 22h50), alinha com Manuel Fúria neste processo intuitivo. A música não tanto como reflexo premeditado da identidade, mas antes como motor de procura. “É um bocado como maquilhar-me sem espelho”, compara. “Acho que conheço a minha cara, mas depois chega alguém com um espelho e surpreendo-me ‘Uau, é aqui que estou, foi isto que fiz?’. O processo criativo acaba por mostrar-nos, muitas vezes, em quem nos tornámos e o momento que estamos a viver.” No caso da cantora nascida em Cabo Verde e cedo emigrada para França (há um ano mudou-se para Lisboa), foi percebendo que a intuição a encaminhou nos últimos tempos para escrever “uma poesia muito mais concreta, muito mais directa, que se calhar foi inspirada pelo hip-hop e por cenas mais terra à terra”. “Não é só o que ouvi, é aquilo que estou a tentar fazer da minha vida toda – tirar o excesso, simplificar a linguagem, ser mais feliz com menos, chatear-me menos com as coisas.”
Essa reflexão entronca noutra, no papel da língua naquilo que canta, como se – e Coquenão atira também essa variável para cima da mesa – pudesse ser uma cantora diferente quando da língua se desprendem palavras em português, com ou sem sotaque “açucarado do Brasil” (definição de Batida), francês, crioulo ou inglês. “Os idiomas carregam uma vibração própria”, argumenta Mayra. “É quase fisiológico. Quando canto em crioulo acho que vem daqui” – e aponta para o estômago. “Quando canto em crioulo é uma coisa super enraizada, é a minha infância no interior de Santiago, são as batucadeiras, os fins-de-semana que passávamos na montanha. É uma língua percussiva. Agora imagine-se se este crioulo e o francês podem soar da mesma forma.”
Ao pular de um idioma para o outro, no entanto, Mayra está certa de que não se liga a personagens, “não são Iggy Pops ou Sasha Fierces da vida”, garante. Liga-se simplesmente a aspectos do seu percurso, da infância em Santiago aos anos escolares em francês, ao português de comunicação fácil com músicos portugueses, brasileiros, africanos. Daí que, mesmo tendo enveredado recentemente pelo inglês, reconheça que é uma língua que a deixa mais longe de si e tendencialmente são essas (as anglófonas) as canções que primeiro deixa cair dos alinhamentos dos concertos.
Brasil, o super-herói
Se Manuel Fúria reclama o seu lugar numa cadeia de criadores pop/rock, em que o público sabe à partida os códigos vigentes em cada disco ou em cada palco, “sem grandes invenções e sem grandes malabarismos cénicos”, para Mayra Andrade o início da carreira foi marcado por uma “marca nítida e clara para as pessoas” que ilustrasse de onde era originária. “Sendo cabo-verdiana, vindo de um país muito pequeno, todos nascemos com essa necessidade de falar e promover Cabo Verde, uma espécie talvez de nacionalismo”, resume. “Como não temos nada, é a música e a cultura que nos une.” Estar mais próxima dos sons locais foi a forma de encontrar uma família à qual pertencer e de contrariar o nomadismo dos seus primeiros anos de vida. “Disco após disco tenho vindo a libertar-me dessa necessidade de pertença a uma família, porque sinto que pertenço a várias famílias e encontro alguma beleza nisso”, diz.
Mayra Andrade tem sido confundida amiúde com uma proveniência brasileira, “uma espécie de atalho para um europeu que oiça música de Cabo Verde e por lhe soar tropical parece-lhe o Brasil”. Reconhecendo que essa sempre foi uma influência forte na sua música – “a música brasileira permitiu-me criar um alicerce, junto com a música cabo-verdiana, o jazz e todas as coisas que gostava de ouvir” –, desde 2010 começou a escavar um fosso consciente “por perceber que bastava pôr um pandeiro numa música para que ela se tornasse brasileira quando tudo o que estava a acontecer à volta não tinha nada que ver com o Brasil”. “É claro que temos um tronco comum, que é África e Portugal, e os brasileiros se calhar são muito mais influenciados por Portugal do que imaginam. Esse encontro até começou mais cedo em Cabo Verde. É um pouco aquela coisa do irmão mais novo que é maior e mais forte. Nós somos mais pequeninos e acabamos por ficar um bocadinho à sombra disso.”
A miscigenação como conceito estruturante é recuperada por Manuel Fúria, defendendo que essa é uma tendência natural de “todas as coisas portuguesas”. Mais uma vez, desembolsa o exemplo dos Heróis do Mar para citar o seu encantamento com uma banda que “usava a língua portuguesa, escrevia bem, tinha óptimas canções, todo um lado cénico e de mistura e fusão de elementos africanos e brasileiros”. Parte do apelo que Fúria sentiu nos Heróis prendia-se ainda com perceber a atitude contra-corrente do grupo, “terem aparecido numa altura em que não era suposto aparecerem, serem betos e não o esconderem num momento em que era ainda mais complicado ser beto do que hoje, e serem aparentemente de direita num contexto de esquerda”. O fascínio cimentou em definitivo graças à noção de que usavam “uma espécie de conservadorismo como atitude punk”, descobrindo-lhes uma postura que Pedro Coquenão, também um confesso apreciador do grupo, propõe definir com “ser punk ao contrário é ser punk”.
Para Coquenão, aquilo que o próprio define como incapacidade de se focar artisticamente, dificuldade em ser coerente, é talvez aquilo que mais bem resume o que cria enquanto Batida, recontextualizando a música angolana pelos seus filtros pessoais. E lembra a música da série juvenil Sítio do Picapau Amarelo, “aquela mistura de pessoas, bonecas de trapos, gente que vem do mato e bruxaria”, como algo muito português, muito africano e muito brasileiro, “uma feijoada que é uma loucura” e que parece ter correspondência na sua criação. Nas lojas de discos, de facto, tanto o colocam entre Bana e Bonga, ao pé de Buraka Som Sistema ou junto a um outro B qualquer. Diz que tem falhado a vida toda na tentativa de se identificar com uma tribo, de ser reconhecido como “um dos nossos” em qualquer rua, cidade, país ou cultura. Mas, na verdade, o miúdo que chegado a Portugal tentou domesticar e inibir o sotaque angolano para se integrar, sabe que há uma tribo alargada que dispensa até a identificação verbal. Largado no Nordeste brasileiro para um concerto há um par de anos, nesse Brasil a que chama “uma espécie de super-herói da lusofonia”, estava em pleno soundcheck e viu “uma criança começar a dançar e a mexer-se como se a música fosse dela”. De certa forma, era mesmo. Às vezes, nem é preciso abrir a boca para que o parentesco se descubra de imediato.