Um ciclo para descobrir o cinema esquecido da Alemanha do pós-guerra
A Cinemateca mostra até ao final do mês o cinema alemão feito entre 1945 e 1963. Uma retrospectiva para perceber aquilo que estamos a perder, nas palavras do programador Olaf Möller.
Olaf Möller não quer saber do cinema convencional, das listas de melhores filmes do mundo ou de sempre. Chama-lhes “o grande filão do conforto”, um cânone que “parece estar a dirigir-se cada vez mais para algo que seja eterno e abstracto”. O truculento crítico e programador alemão diz não estar "nada de acordo com o consenso ou com o cânone, mas há uma razão para isso”. Möller (n. 1971), cinéfilo apaixonado, polémico, provocador, uma das figuras da moderna cinefilia global, tem um genuíno interesse nos filmes que nos passam ao lado. “Trata-se mais de perguntar porque é que eles foram ignorados ou esquecidos”, explica numa tarde chuvosa na Cinemateca Portuguesa. “O que é que estamos a tentar evitar? Com o que é que não queremos lidar? Que desculpas estamos a usar?”.
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Olaf Möller não quer saber do cinema convencional, das listas de melhores filmes do mundo ou de sempre. Chama-lhes “o grande filão do conforto”, um cânone que “parece estar a dirigir-se cada vez mais para algo que seja eterno e abstracto”. O truculento crítico e programador alemão diz não estar "nada de acordo com o consenso ou com o cânone, mas há uma razão para isso”. Möller (n. 1971), cinéfilo apaixonado, polémico, provocador, uma das figuras da moderna cinefilia global, tem um genuíno interesse nos filmes que nos passam ao lado. “Trata-se mais de perguntar porque é que eles foram ignorados ou esquecidos”, explica numa tarde chuvosa na Cinemateca Portuguesa. “O que é que estamos a tentar evitar? Com o que é que não queremos lidar? Que desculpas estamos a usar?”.
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É exactamente isso que Möller está a fazer, através da retrospectiva que programou (com Roberto Turigliotti) para o Festival de Locarno e que veio acompanhar, numa versão alternativa, à Cinemateca. República Federal da Alemanha 1949-1963: Amados e Rejeitados dá a ver, até ao final de Novembro, o cinema alemão do imediato pós-guerra, através de uma série de filmes “ensanduichados” entre o final da Segunda Guerra Mundial e o Manifesto de Oberhausen, que, em 1962, deu o tiro de partida para o “jovem cinema alemão”. A retrospectiva não mostra (apenas) os filmes que emigrados como Fritz Lang ou Peter Lorre fizeram ao regressar à Alemanha depois da guerra; debruça-se sobretudo sobre os filmes, raros ou desconhecidos, de autores como Wolfgang Staudte, Helmut Käutner ou Gerhard Lamprecht. Ou seja, mostra o cinema que a geração de Oberhausen chamava de Papas Kino, “o cinema do papá”, e que a posterior vitalidade do cinema de Edgar Reitz, Alexander Kluge, Werner Herzog ou Volker Schlöndorff relegou para as prateleiras dos arquivos. <_o3a_p>
A comparação com a Nouvelle Vague francesa, que também veio fazer esquecer o cinéma de papa contra o qual reagia, é perfeitamente legítima. “É a comparação que os próprios cineastas de Oberhausen fariam”, diz o programador, antes de apontar como o papel central da Alemanha na Segunda Guerra Mundial complica a analogia. “A nação cometeu os crimes mais horríveis que podiam ser cometidos no século XX, e depois houve o período da 'reeducação' em que estávamos sempre a ouvir que éramos péssimos. Por exemplo, o produtor Artur Brauner quis fazer nos anos 1950 um filme sobre o caso Sophie Scholl e o movimento da Rosa Branca [de resistência pacífica anti-nazi durante a guerra], mas nunca o conseguiu porque toda a gente dizia que o cinema alemão 'ainda não era suficientemente bom'.” Era uma posição insustentável – e errada. “Esquecemo-nos que o cinema alemão havia sido amado em todo o mundo e que as pessoas continuavam a reconhecê-lo.” <_o3a_p>
Mesmo apanhada nas contingências de um país a recomeçar do zero, a produção da RFA na década de 1950 ultrapassou fronteiras, ganhou prémios, lançou vedetas como Maria Schell, Lilli Palmer, Romy Schneider, Horst Buchholz, Curd Jürgens... “Criou-se este mito que os filmes alemães se destinavam apenas ao público alemão, mas isso era uma treta! Os filmes viajavam pelo mundo todo e ganhavam prémios! Tínhamos sido uma potência cinematográfica durante décadas. Porque é que de repente teríamos deixado de o ser?”, desabafa Möller.<_o3a_p>
Amados e Rejeitados tem assim um papel pedagógico, recuperando filmes importantes do seu tempo como Raparigas de Uniforme, de Géza Radványi, E o Amor Chegou…., de Georg Tressler, ou Kirmes, de Wolfgang Staudte que acabaram esquecidos, até pelos próprios alemães. Möller ilustra-o com a conversa que teve em Locarno com um dos cineastas do grupo de Oberhausen, Edgar Reitz (Heimat), que admitiu nunca ter visto muitos deles. “Reitz disse-me que iam ver filmes franceses ou italianos, mas não perdiam tempo a ver filmes alemães. Perguntei-lhe se estavam a revoltar-se contra algo que não conheciam, e ele disse que sim. Era uma questão de princípio. Era contra a sociedade, contra o país que os rodeava, que se estavam a revoltar.” <_o3a_p>
Amados e Rejeitados é um primeiro passo para a redescoberta destes filmes, e a sua recepção extática em Locarno surpreendeu Möller. “Sempre que apresentava estes filmes as pessoas reagiam muito favoravelmente. Mas havia um certo cepticismo da minha parte. Sou alemão, afinal de contas, e há sempre a tal relutância: será que isto interessa às pessoas? O modo como esta retrospectiva tem sido recebida diz que sim. Há mesmo algo de especial nestes filmes.”<_o3a_p>