Avó, chumbei no código!

O actual modelo de exame não justifica a corrupção e a criminalidade, mas promove a insegurança sem por isso avaliar conhecimentos, fomentando um sistema onde quem paga somos todos nós

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Maria Stiehler/Unsplash

"Avó, chumbei no código...", disse ao telefone, ou pensei ter dito, porque entre o nó entravado na garganta e a boca só se ouvia a minha avó do outro lado a dizer “O quê?”, e eu, outra vez, agora com a voz trémula mas audível, “Chumbei no código, avó, tive quatro erradas”, sem querer acreditar no meu próprio fracasso, procurando repetir as palavras para tornar a derrota em algo físico, palpável, mensurável, passível de compreender. Mas não, com quatro erradas não havia compreensão para me valer, socorrer ou acudir.

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"Avó, chumbei no código...", disse ao telefone, ou pensei ter dito, porque entre o nó entravado na garganta e a boca só se ouvia a minha avó do outro lado a dizer “O quê?”, e eu, outra vez, agora com a voz trémula mas audível, “Chumbei no código, avó, tive quatro erradas”, sem querer acreditar no meu próprio fracasso, procurando repetir as palavras para tornar a derrota em algo físico, palpável, mensurável, passível de compreender. Mas não, com quatro erradas não havia compreensão para me valer, socorrer ou acudir.

Tinha chumbado, pronto, sem saber o que era mais humilhante, se ter de repetir o teste, se ter de cravar mais 100 euros à minha avó (que por acaso até tinha desembolsado o dinheiro para pagar a carta), se o facto de não ter emprego, se de tudo um pouco.

E a minha avó sem querer acreditar como é que um aluno de 17 valores chumba assim num exame. É fácil, avó, porque quando cerca de 40% dos candidatos chumbam nos exames teóricos tal só acontece não porque os alunos são maus, mas sim os testes, onde as incorrecções no português conseguem equiparar a nossa língua ao basco. Isso (e porque estamos sempre a falar de dinheiro e tirar a carta sai caro), ou os testes são feitos para chumbar. Inclino-me para a segunda opção, não querendo com isto justificar o meu espalhanço (mas tentar não custa, não é?).

No último ano e meio, a GNR e a PSP detiveram 12.978 automobilistas sem carta de condução, a maior parte por não terem outra opção senão a de desistir de tirar a carta porque o presente modelo de exame de código assim obriga. Mas atenção, porque produzir testes estupidamente difíceis, onde nem o Camões com os dois olhos e dez cantos acerta, ainda não é crime. Já pegar num volante sem carta…

No entanto, quando 80% dos candidatos reprovados têm bons conhecimentos de português, porque não a adopção do sistema holandês, onde as questões colocadas exigem apenas um “sim” ou “não”? Afinal de contas, estamos aqui para avaliar conhecimentos ou para, à boa (má) maneira portuguesa, fazer negócio?

Já tirei a carta há quase 20 anos. Passei no código à segunda, com duas erradas, mas passei. Se por um lado queimei as pestanas a estudar o Catatau de fio a pavio, por outro não consigo deixar de pensar como só passei por sorte e não por saber as regras da estrada. E se tive sorte, o mesmo não posso dizer de quem deu uma caixa de vinho ao inspector de condução ou de quem tirou a carta sem o 9.º ano completo, sem esquecer os que não querem saber e todos os anos são apanhados sem título de condução.

O actual modelo de exame não justifica a corrupção e a criminalidade, mas promove a insegurança sem por isso avaliar conhecimentos, fomentando um sistema onde quem paga somos todos nós, mortos ou estropiados na estrada ano após ano, como se de uma guerra civil se tratasse. Para quando a mudança? E, já agora, posso ter os 100 euros de volta? Com juros, por favor.