“Via verde” do Papa fez disparar anulação de casamentos católicos

Querem casar de novo diante de um altar, apagar aquilo que um dia quiseram para a vida: em 2016, o PÚBLICO contou 196 pedidos de nulidade do casamento católico. Mais 50% do que em 2015.

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Até aqui, a declaração de nulidade poderia custar entre 2500 e dez mil euros. Hoje, com o processo mais simples, ficará entre os 600 e os 1500 euros PEDRO CUNHA/ARQUIVO

Os pedidos de anulação do casamento católico duplicaram, e nalguns casos triplicaram, na maioria das dioceses portuguesas, desde que o Papa Francisco anunciou, em Setembro do ano passado, uma espécie de “via verde” para simplificar e acelerar o processo. Em Portugal, a Igreja Católica não tem nenhuma entidade que centralize os dados nacionais (as 20 dioceses respondem directamente perante a Santa Sé), mas os dados que o PÚBLICO recolheu junto de 11 dos 14 tribunais eclesiásticos existentes no país mostram que entraram este ano 196 pedidos de declaração de nulidade, o que traduz um aumento de 50% relativamente aos 129 do ano passado.

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Os pedidos de anulação do casamento católico duplicaram, e nalguns casos triplicaram, na maioria das dioceses portuguesas, desde que o Papa Francisco anunciou, em Setembro do ano passado, uma espécie de “via verde” para simplificar e acelerar o processo. Em Portugal, a Igreja Católica não tem nenhuma entidade que centralize os dados nacionais (as 20 dioceses respondem directamente perante a Santa Sé), mas os dados que o PÚBLICO recolheu junto de 11 dos 14 tribunais eclesiásticos existentes no país mostram que entraram este ano 196 pedidos de declaração de nulidade, o que traduz um aumento de 50% relativamente aos 129 do ano passado.

 “Só nos últimos três meses, entraram seis processos. É um aumento em duplicado ou em triplicado do que se passava nos outros anos, em que a média era de dois ou três processos por ano”, adiantou José Gomes de Sousa, vigário-judicial do Tribunal Eclesiástico de Viana do Castelo. Para responder ao aumento da procura, mas também ao decreto papal que, há um ano, introduziu maior celeridade nos processos, este tribunal “recrutou” agora mais três juízes diocesanos, elevando para sete o número de padres que se dedicam a ajuizar sobre a legitimidade de se declarar nulo aquilo que um dia se quis para toda a vida.

No Tribunal Eclesiástico do Porto, o aumento foi de quase 138%. “Passámos de 15 processos em 2014, para 13 em 2015 e para 31 em 2016”, adiantou o respectivo notário. No Tribunal Metropolitano Patriarcal de Lisboa, que abrange também as dioceses de Santarém e Setúbal, o aumento foi menos expressivo. Contavam-se, até quarta-feira, 84 pedidos de declaração de nulidade. Em 2015, tinham sido 69, contra os 66 de 2014. Já em Viseu, entraram este ano 11 pedidos, contra os cinco do ano anterior e os dois de 2014. E em Aveiro, adianta o vigário Manuel Rocha, “o tribunal está com cinco pedidos até agora, o que significa o dobro do normal”, sendo que no que se sentiu mais procura foi no pedido de informações. “Aqui já estaremos a falar de 15 casos”. À excepção de Vila Real e de Leiria-Fátima - onde o aumento da procura de informação não se traduziu em mais pedidos entrados -, os vigários judiciais dos tribunais eclesiásticos contactados pelo PÚBLICO apontam para um inequívoco aumento da procura.

“A iniciativa do Papa teve o mérito de ajudar a encarar estas declarações de nulidade matrimonial como parte da pastoral. Antes, dava a impressão que era quase como um tabu, algo de que se falava em surdina, baixinho. Ao falar abertamente sobre este assunto, o Papa reconheceu que havia um problema, um estigma, e que as pessoas que sofriam por causa disso mereciam ser ajudadas”, sustenta o padre Fernando Clemente Varela, vigário judicial do Tribunal Eclesiástico de Leiria-Fátima. Aqui, entraram até agora 11 processos, contra os 16 de 2015 e os 10 de 2014. “Não tivemos um aumento mais expressivo este ano, porque, mesmo antes de o Papa se ter pronunciado sobre esta matéria, tínhamos promovido um momento de formação e de reciclagem para o clero sobre a temática – muitos padres não sabiam como encaminhar as pessoas –, o que talvez ajude a explicar a subida verificada de 2014 para 2015”, contextualiza.

“Vergonha”

Para este padre, os tempos são de mudança. “Isto era motivo de vergonha. As próprias pessoas envolvidas, e com desejo de pedir a nulidade do matrimónio, tinham receio. Medo de se expor. E é preciso que lhes continuemos a explicar que o processo é sigiloso, que o único réu é o matrimónio, não as pessoas, e que não vão enfrentar nenhum juiz a bater com o martelo em cima da mesa. Quando se põe a pensar “na reforma do Papa”, Clemente Varela ri-se. “Parece uma coisa tão revolucionária, mas afinal é simples. E a gente olha para trás e questiona-se: ‘Mas por que é que os outros Papas não pensaram nisto antes?”.

Aumentar

Quando, em Agosto de 2015, assinou o decreto Mitis Iudex Dominus Iesus, Jorge Mario Bergoglio forçou a Igreja a olhar de novo para o processo canónico para declaração de nulidade matrimonial, ao fim de um hiato de quase 100 anos. O objectivo do Papa foi simplificar um processo que podia demorar anos e custar milhares de euros. Assim, desde 8 de Dezembro, dia em que as mudanças entraram em vigor, deixaram de ser necessárias duas sentenças conformes para ser efectivada a nulidade do casamento, tendo passado a bastar uma.

Do mesmo modo, e tal como no divórcio civil, basta a vontade de um para que a nulidade possa ser decretada, desde que o pedido esteja devidamente fundamentado e comprovado e desde que a outra parte tenha sido citada. E, nos casos em que ambos os implicados convirjam no pedido, o processo pode seguir a chamada via mais breve e ficar concluído em 45 dias, por decisão de um único juiz – antes era preciso um colectivo de três -, conquanto na fundamentação do pedido estejam questões de peso como, por exemplo, o aborto procurado para impedir a procriação, a “ocultação dolosa” de esterilidade, de uma grave doença contagiosa, de filhos nascidos de uma relação anterior ou de um encarceramento, bem como a falta de uso da razão comprovada por documentos médicos, a violência física infligida para extorquir consentimento ou a “permanência obstinada” numa relação extraconjugal no momento do matrimónio ou imediatamente depois.

O vigário judicial do Tribunal Interdiocesano de Évora, Algarve e Beja, Silvestre Marques, que registou “um acréscimo de novos processos significativamente superior a 50%”, adiantou ao PÚBLICO que alguns destes novos pedidos estão a ser já conduzidos segundo a chamada “fórmula mais breve”. Mas mesmo os pedidos que seguem a via ordinária, têm tido uma resposta mais célere. “Tendo-se acabado com a obrigatoriedade de uma segunda sentença conforme, a decisão torna-se executória a partir do momento em que há uma sentença afirmativa, o que, torna mais célere a possibilidade de passar a novas núpcias, sem prejuízo de um eventual recurso”, explica, para precisar que “normalmente, os casos resolvem-se em menos de um ano”.

O papa Francisco pediu também que o processo passasse a ser tendencialmente grátis, à excepção das custas administrativas. Até aqui, dependendo da existência de recurso a advogados e da necessidade ou não de perícias psicológicas ou psiquiátricas, a declaração de nulidade poderia pesar entre 2500 e 10 mil euros no bolso dos requerentes. Ao PÚBLICO, os vigários judiciais apontam agora preços substancialmente abaixo: entre os 600 e os 1500 euros. De resto, todos garantem que a possibilidade de redução ou isenção de custas era já uma realidade, desde que o requerente comprovasse a sua incapacidade de custear o processo, através da declaração de IRS.

“Pensava-se que isto era uma coisa só para alguns, os ricos, o que, mais do que uma mentira, era uma calúnia. A diferença é que quando são pobres, não aparecem na comunicação social”, comenta o vigário judicial de Viana do Castelo, José Gomes de Sousa, para lembrar que a sua primeira sentença favorável à nulidade foi dada em 1992, precisamente no ano em que Carolina do Mónaco obteve a anulação do seu primeiro casamento. “Como era um padeiro pobre, não apareceu nas revistas”, brinca.

Quanto ao que leva alguém a querer apagar da sua história o “Até que a morte nos separe”, José Gomes de Sousa aponta os motivos mais comuns. “Imaturidade afectiva, falta de liberdade interna, pessoas que ocultam a prole ou a infidelidade, mas também o medo associado à violência que normalmente não é física mas muito mais subtil e difícil de provar…”. O vigário judicial de Viseu e presidente da Associação Portuguesa de Canonistas, João Martins Marques, que este ano já proferiu dez sentenças favoráveis à declaração de nulidade, contra as quatro do ano passado, aponta outro fundamento admissível. “Imagine um rapaz que quer casar com uma rapariga virgem e, antes de casar, lhe perguntou se o era e ela garantiu que sim. Se concluir que, afinal, não era, isso configura dolo”, descreve, para acrescentar que “normalmente, as pessoas já estão separadas, alguns até já estão numa nova relação e decidem verificar se o casamento foi válido ou não para poderem casar novamente pela Igreja”.

Mas também “há muitas pessoas para quem é uma questão de Justiça e de apuramento da verdade”, adianta Sérgio Dinis, vigário do Tribunal Eclesiástico de Vila Real. “Aparecem-nos pessoas muito feridas, que rasgam fotografias e estragam o vídeo do casamento e que, no fundo, o que procuram é obter paz e tranquilidade”, acrescenta, por seu turno, o vigário de Viana do Castelo. A partir de Aveiro, o padre Manuel Rocha, concorda. “As pessoas procuram ficar de bem com elas mesmas e, por outro lado, normalizar a sua relação com a Igreja”.