Se não for ela, quem?
Obama vê Merkel como uma corajosa defensora dos valores da democracia, num mundo que, como ele próprio disse, está a tender perigosamente para um concerto de “homens fortes”.
1. A quem devia o Presidente americano entregar o testemunho do mundo livre que os Estados Unidos lideram desde há mais de 70 anos? A resposta era simples, quanto mais não seja por exclusão de partes. A velha “relação especial” forjada na II Guerra já deixou de ser o que era. David Cameron nunca conseguiu conquistar a simpatia de Obama, que via nele um líder demasiado vazio de convicções. Tinha razão. O anterior primeiro-ministro ficará na História como o líder que levou o seu país a abandonar a Europa, não por convicção mas por oportunismo. Theresa May, cuja devoção europeia não é enorme, ainda não conseguiu descortinar um caminho para levar o "Brexit" a bom porto. O seu chefe da diplomacia, que infelizmente já ninguém respeita, considerou Trump uma oportunidade. Deve ter sido antes do recado que o Presidente eleito enviou a May: “Se vier aos EUA, dê-me um toque.” Para Obama, parar em Londres não faria grande sentido. Em Paris, o fantasma de François Hollande vagueia tristemente pelos belos salões do Eliseu. Foi um bom aliado de Obama, quando se tratou da Síria e do combate ao Estado Islâmico. Mas a França está em “intervalo” até às eleições da Primavera. Resta a chanceler que Obama definiu como “provavelmente, a minha mais próxima parceira internacional.” É a líder do país mais poderoso da Europa. Vai disputar um quarto mandato e não se vê quem lhe possa fazer sombra. Conseguiu até agora manter a zona euro intacta (mesmo com custos políticos e sociais enormes) contra a vontade de muita gente, incluindo no seu próprio governo. Sem ela e sem o seu entendimento com Obama, a Europa não tinha conseguido enfrentar o novo nacionalismo agressivo de Putin. Não tem um pingo de carisma, ao contrário do seu interlocutor americano. Mas ambos têm em comum um intelecto capaz de analisar racionalmente cada desafio para chegarem a uma decisão. “É a única líder que resta”, escreve Philip Stevens no Financial Times. “Com a tempestade trumpiana a avançar pelo Atlântico, a Alemanha e a Europa parecem inimagináveis sem ela”. Como a imprensa americana sublinhou, talvez com algum exagero, ela é hoje “a mais forte advogada da democracia liberal na cena internacional”. No seu encontro com Obama, ambos foram os porta-vozes do comércio livre e da globalização, mesmo que corrigida, e das instituições multilaterais.
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1. A quem devia o Presidente americano entregar o testemunho do mundo livre que os Estados Unidos lideram desde há mais de 70 anos? A resposta era simples, quanto mais não seja por exclusão de partes. A velha “relação especial” forjada na II Guerra já deixou de ser o que era. David Cameron nunca conseguiu conquistar a simpatia de Obama, que via nele um líder demasiado vazio de convicções. Tinha razão. O anterior primeiro-ministro ficará na História como o líder que levou o seu país a abandonar a Europa, não por convicção mas por oportunismo. Theresa May, cuja devoção europeia não é enorme, ainda não conseguiu descortinar um caminho para levar o "Brexit" a bom porto. O seu chefe da diplomacia, que infelizmente já ninguém respeita, considerou Trump uma oportunidade. Deve ter sido antes do recado que o Presidente eleito enviou a May: “Se vier aos EUA, dê-me um toque.” Para Obama, parar em Londres não faria grande sentido. Em Paris, o fantasma de François Hollande vagueia tristemente pelos belos salões do Eliseu. Foi um bom aliado de Obama, quando se tratou da Síria e do combate ao Estado Islâmico. Mas a França está em “intervalo” até às eleições da Primavera. Resta a chanceler que Obama definiu como “provavelmente, a minha mais próxima parceira internacional.” É a líder do país mais poderoso da Europa. Vai disputar um quarto mandato e não se vê quem lhe possa fazer sombra. Conseguiu até agora manter a zona euro intacta (mesmo com custos políticos e sociais enormes) contra a vontade de muita gente, incluindo no seu próprio governo. Sem ela e sem o seu entendimento com Obama, a Europa não tinha conseguido enfrentar o novo nacionalismo agressivo de Putin. Não tem um pingo de carisma, ao contrário do seu interlocutor americano. Mas ambos têm em comum um intelecto capaz de analisar racionalmente cada desafio para chegarem a uma decisão. “É a única líder que resta”, escreve Philip Stevens no Financial Times. “Com a tempestade trumpiana a avançar pelo Atlântico, a Alemanha e a Europa parecem inimagináveis sem ela”. Como a imprensa americana sublinhou, talvez com algum exagero, ela é hoje “a mais forte advogada da democracia liberal na cena internacional”. No seu encontro com Obama, ambos foram os porta-vozes do comércio livre e da globalização, mesmo que corrigida, e das instituições multilaterais.
2. E o que é mais curioso é que levaram quase cinco anos para se entenderem, o que corresponde ao tempo que a chanceler precisou para compreender a responsabilidade do seu país à escala europeia e internacional. Foi em Berlim (2008) que o então candidato à Casa Branca fez o seu mais impressionante discurso aos europeus, perante 200 mil pessoas que o aplaudiram em delírio. Teve de fazê-lo junto à coluna do Anjo da Vitória, porque Merkel recusou-lhe a Porta de Brandeburgo. Quando, em 2009, regressou à Europa (para o G20 e a cimeira da NATO), a chanceler ainda não parecia impressionada com o novo Presidente. A BBC recorda que ela “não gostou da atmosfera que rodeava o fenómeno Obama”. Na Líbia, em 2011, a Alemanha absteve-se no Conselho de Segurança (membro rotativo) ao lado da China, da Rússia e do Brasil, contra os votos dos seus parceiros euro-atlânticos. Muito se escreveu então sobre o seu comportamento de “potência emergente” e os riscos que comportava. Ignorou a intervenção da França no Mali. Os atentados terroristas em Paris fizeram-na rapidamente mudar de opinião. Nem vale a pena falar da sua primeira reacção à bancarrota iminente da Grécia. Via a relação transatlântica como mais económica do que militar. A Rússia fê-la perceber o contrário. Sem ela, teria sido impossível uma frente comum contra as tentações belicistas de Putin. Obama descreveu-a como uma parceira “constante, firme e confiável”. Hoje, perante o terramoto americano, o Presidente vê-a como uma corajosa defensora dos valores da democracia, num mundo que, como ele próprio disse, está a tender perigosamente para um concerto de “homens fortes”. Elogiou-a pela sua política de portas abertas para os refugiados. Hoje, tropas alemães estão a ajudar a França no Mali e a participar no combate ao Estado Islâmico na Síria. Soldados alemães vão estacionar nos Bálticos, numa missão de dissuasão da NATO dirigida a Moscovo.
3. Ninguém esperava que a última visita de Obama à Europa fosse o que foi. Podia ter sido a de um Presidente que sai da Casa Branca com uma popularidade apenas equivalente à de Reagan e que os europeus continuam a adorar, como uma rara fonte de inspiração. Quis publicamente tranquilizar os europeus sobre a manutenção da NATO e mostrar ao seu sucessor que Putin não dispensa uma política firme do Ocidente. A chanceler sabe que, sem o apoio americano, não conseguirá manter uma frente unida contra as ambições de Moscovo. Nos últimos dias, não houve líder europeu que não manifestasse a sua devoção à NATO. Nenhum deles imaginou, apesar da retórica anti-americana de alguns, que podia chegar o dia em que EUA deixariam de garantir a sua segurança. O Presidente, porventura com o pensamento virado para a América, exortou os europeus a não darem a democracia e a paz como certas e a lutarem por elas. A Europa enfrenta igualmente uma vaga de nacionalismo e de populismo a que Trump acaba de dar uma nova vida. Mas o brilho das suas ideias esteve sempre acompanhado pela sombra do Presidente eleito. Não era esta a América que queria deixar. Foi um Obama cansado, envelhecido e triste que se apresentou em Berlim.
4. Não foi a Berlim para entregar a Merkel o testemunho da liderança do mundo livre, como a imprensa americana escreveu. Mas entregou-lhe o dever de manter a Europa unida, para fazer frente à inevitável deriva americana para o isolacionismo e o proteccionismo. O que já não é pouco. Não o fez com condescendência excessiva. Lembrou o papel crucial dos Estados Unidos para resgatar a Alemanha do opróbrio, reconstruir a sua economia e para mantê-la segura nos piores anos da Guerra Fria e, de novo, o seu papel crucial para uma reunificação sem convulsões e no seio da Europa e da NATO. A Alemanha continua a ser perseguida pela sua condição geopolítica: demasiado grande para a Europa e demasiado pequena para o mundo. Não tem nem a força, nem a vontade, nem a capacidade para liderar o mundo livre. As suas forças armadas não intimidam ninguém. A sua liderança política tem sobretudo a ver com a ausência total de alternativas. E, sobretudo, não está preparada para pagar o custo elevado que acompanha a liderança e que a América sempre pagou. Acresce que as crises tendem sempre a invocar o passado e o passado da Alemanha foi demasiado invocado, nesta crise europeia. É uma limitação do seu poder que Joshka Fischer resumiu numa frase. Disse ele, citado pela Economist, que há uma coisa que os alemães nunca poderão dizer: “Vamos fazer a Alemanha grande outra vez”. E não é só isso. Escreve Hans Kundnani, do German Marshall Fund: “A Europa está dividida pela crise do euro. Como pode agora unir-se sob liderança alemã?” Boa pergunta.
Poderá a Europa sobreviver a Trump? Poderá tentar manter a viva a chama dos valores que unem o Ocidente? Foi o que Obama veio, mais modestamente, pedir a Merkel. Não vale a pena sermos demasiado optimistas. São péssimas as notícias que nos chegam da Trump Tower. E a Europa vai entrar numa montanha russa eleitoral que corre o risco de nem sequer chegar ao fim.