Fragata russa ajuda a manter à tona construção naval em madeira

Dono da Shtandart escolheu os estaleiros de Vila do Conde para uma grande reparação, numa altura em que esta arte está prestes a ser património imaterial nacional e aponta para as listas da UNESCO.

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Por estes dias, as atenções em Vila do Conde distrairam-se da nau ancorada na margem norte e estão voltadas para os estaleiros da margem sul, onde atracou há dias um navio-escola de pavilhão russo, que replica as linhas de uma fragata que ficou famosa ao serviço de Pedro o Grande, no século XVIII. Visitável neste fim-de-semana, a Shtandart vai ser alvo, nos próximos meses, de uma grande reparação que põe em evidência a qualidade da construção naval em madeira no concelho - e em Portugal, por arrasto -  actividade em risco de desaparecimento e a que o município pretende dar um novo fôlego através do projecto “Um porto para o mundo". Que tem como objectivo último a preservação destes saberes e a sua classificação como património imateral da humanidade, pela UNESCO.

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Por estes dias, as atenções em Vila do Conde distrairam-se da nau ancorada na margem norte e estão voltadas para os estaleiros da margem sul, onde atracou há dias um navio-escola de pavilhão russo, que replica as linhas de uma fragata que ficou famosa ao serviço de Pedro o Grande, no século XVIII. Visitável neste fim-de-semana, a Shtandart vai ser alvo, nos próximos meses, de uma grande reparação que põe em evidência a qualidade da construção naval em madeira no concelho - e em Portugal, por arrasto -  actividade em risco de desaparecimento e a que o município pretende dar um novo fôlego através do projecto “Um porto para o mundo". Que tem como objectivo último a preservação destes saberes e a sua classificação como património imateral da humanidade, pela UNESCO.

Da foz deste rio, ao longo de séculos, sairam barcas, pinaças, baixéis, caravelas, zavras, naus, lanchas, lugres, patachos e iates das mãos de carpinteiros experientes e reconhecidos cujos descendentes,, nas últimas décadas, voltaram a pôr as mãos ao servilo da construção de réplicas histórias desses navios de outrora. Não espanta por isso que, com o apoio "diplomático" do município, um destes estaleiros, Barreto & Filhos, tenha sido escolhido pelo armador russo. E, com a chegada da Shtandart  há muito mais em jogo. Desde a possibilidade de as oficinas locais receberem uma encomenda da construção de um navio que se tornaria num dos maiores investimentos de uma só empreitada nos estaleiros, até à consolidação do mérito do projecto e, consequentemente, do sucesso da candidatura à UNESCO.

A Direção Geral do Património Cultural (DGPC) está, nesta altura, a apreciar uma candidatura da autarquia para a inclusão das "Técnicas de construção e reparação naval em madeira de Vila do Conde" no "Inventário Nacional" da riqueza imaterial, cujo processo pode ser consultado online. Esse reconhecimento do Estado Português é indispensável para que todo o processo possa, logo depois, seguir para a UNESCO. A autarquia  submeteu uma síntese histórica, sociológica e até económica da importância dos estaleiros, e dezenas de fotografias (desde a construção aos momentos de bota-abaixo), filmes, desenhos, peças e fontes de cartografia.

Consultando diagnóstico compreende-se por que é que, neste caso, todo o tempo conta para provar que a actividade, apesar de ameaçada, é sustentável e capaz de perdurar (o que é outra das imposições da UNESCO). Um dos maiores problemas da construção naval está na idade dos mestres. Dos 22 carpinteiros especialistas que, em 2015, estavam nos quatro estaleiros existentes (Samuel & Filhos, Barreto & Filhos e Sicnave, todos instalados no rio Ave, em Azurara, e os Irmãos Viana, que laboram no interior do porto da Póvoa de Varzim) nenhum tem menos de quarenta anos de idade, havendo apenas dois homens em fase de aprendizagem de uma arte que leva anos a aprimorar. A maioria está mesmo acima dos cinquenta anos.

"A inexistência de aprendizes aliada à idade avançada dos melhores executantes, levará num curto a médio prazo à interrupção da transmissão deste conhecimento. Urge, portanto, tomar medidas para garantir a sua continuidade, uma vez que a frota de pesca nacional é maioritariamente constituída por embarcações de madeira", lê-se no diagnóstico.

Nuno Barretto, sócio do estaleiro que está a reparar o navio russo, confirma que há, de facto, um problema com a mão-de-obra especializada na construção em madeira porque "ao contrário de outros países, Portugal não valoriza o que tem de bom". A este estado de coisas não é indiferente também a mudança de paradigma no material utilizado nas embarcações para a pesca. Em 1995, os estaleiros de Vila do Conde construíram dez barcos em madeira, mas passados apenas dez anos as últimas 16 encomendas foram todas para cascos em alumínio.

Este material e o aço passaram a dominar as escolhas dos armadores de pesca e, assim sendo, não é de estranhar que, entre 1995 e 2010, dos 236 barcos construídos nos estaleiros (209 de pesca e os restantes 17 destinados ao turismo, à navegação em rio ou ensino), 176 tenham sido em alumínio, cinco em aço e somente 55 em madeira. Os soldadores, ferreiros, serralheiros vão preenchendo lugares na estrutura fabril que nem tem necessidade de grande especialização, pois recorre a subempreitadas de montagem de peças metalizadas pré-fabricadas e de serviços mecânicos.

É certo que, como diz o diagnóstico apresentado, as embarcações em madeira ainda representam 66 por cento da frota pesqueira (dados de 1995) e que, num primeiro olhar, as reparações vão assegurar uma boa fonte de rendimento nos próximos anos. Veja-se que, em 2015, só se fizeram duas embarcações novas nos quatro estaleiros, mas realizaram-se 256 reparações.

Todavia, com a perda da principal característica diferenciadora os carpinteiros especialistas tornam-se desnecessários e é todo um saber que se perde. E, os estaleiros de Vila do Conde correm o risco de, no futuro mais ou menos longínquo, serem ultrapassados por unidades de maior dimensão como as que pontificam na Galiza. Reparar ou fazer barcos em metal há muito quem faça, mas moldar a madeira para criar uma embarcação segura não é para qualquer um.

Mas "há mercado para a madeira, veja-se o caso dos barcos turísticos que, por exemplo, estão no [rio] Douro ou os veleiros que continuam a demandar o nosso país", argumenta Elisa Ferraz que vê na classificação da UNESCO uma oportunidade de desenvolvimento.  Não só pelo que ela representará em termos do mediatização do território, mas principalmente pela abertura de possibilidades de negócios para os estaleiros locais. Resumindo: a classificação almejada é uma forma de garantir que este porto, de onde sairam grandes navios desde o tempo das descobertas, continue a ser uma porta para o mundo.