As aventuras do anti-herói Corona continuam a ser música para os nossos ouvidos

Os Corona sabem manter o sabor “caseiro” da sua música, como um grupo de amigos meios destravados a cuspir rimas numa garagem.

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Corona: aves raras do hip-hop português a cantar o Porto e a portugalidade (dB, à esquerda, e Logos)

Alguém disse que, por vezes, a melhor das novidades é não haver novidades. É uma ideia válida para os Corona (agora Conjunto Corona), que mantêm aqui, à semelhança dos álbuns anteriores, o seu universo profundamente autoral (musical e tematicamente falando) no mapa do hip-hop português, e cujo ponto central é a carismática personagem (com o nome do grupo) que, desde 2014, vem deambulando, aos tropeções, pelo mundo dos alucinogénios, da desintoxicação e, agora, da pornografia e das casas de alterne. Dupla composta por dB (um dos mais talentosos do hoje já extenso rol de beatmakers portugueses e autor do excelente 4400 OG editado no início do ano) e por Logos (rapper, entre outros projectos, dos extintos Raíz Urbana, e que, aqui como nos Ollgoody’s, se revela um engenhoso letrista em quem o rap vira uma imaginativa lengalenga), os Corona, se não se levam a sério, levam muito a sério o seu idiossincrático universo na forma como, de álbum para álbum, reforçam a trama em torno da sua personagem, o gosto pelo calão e pela toponímia (além de ruas ou zonas, ouve-se uma lista de praticamente todos os bairros do Porto e de Gaia em Mafiando Bairro Adentro), enfim, a sua iconografia e respectiva materialização física, como se a ficção ouvida nas músicas saltasse para a realidade (depois dos shots de hidromel, das cassete áudio ou da pen-pill-usb, agora foi a vez da disponibilização do álbum num site de vídeos porno e da comercialização de uma cassete VHS, toda uma imagética que, por vezes, os faz incorrer, mesmo que involuntariamente, numa certa pose kitsch).

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Alguém disse que, por vezes, a melhor das novidades é não haver novidades. É uma ideia válida para os Corona (agora Conjunto Corona), que mantêm aqui, à semelhança dos álbuns anteriores, o seu universo profundamente autoral (musical e tematicamente falando) no mapa do hip-hop português, e cujo ponto central é a carismática personagem (com o nome do grupo) que, desde 2014, vem deambulando, aos tropeções, pelo mundo dos alucinogénios, da desintoxicação e, agora, da pornografia e das casas de alterne. Dupla composta por dB (um dos mais talentosos do hoje já extenso rol de beatmakers portugueses e autor do excelente 4400 OG editado no início do ano) e por Logos (rapper, entre outros projectos, dos extintos Raíz Urbana, e que, aqui como nos Ollgoody’s, se revela um engenhoso letrista em quem o rap vira uma imaginativa lengalenga), os Corona, se não se levam a sério, levam muito a sério o seu idiossincrático universo na forma como, de álbum para álbum, reforçam a trama em torno da sua personagem, o gosto pelo calão e pela toponímia (além de ruas ou zonas, ouve-se uma lista de praticamente todos os bairros do Porto e de Gaia em Mafiando Bairro Adentro), enfim, a sua iconografia e respectiva materialização física, como se a ficção ouvida nas músicas saltasse para a realidade (depois dos shots de hidromel, das cassete áudio ou da pen-pill-usb, agora foi a vez da disponibilização do álbum num site de vídeos porno e da comercialização de uma cassete VHS, toda uma imagética que, por vezes, os faz incorrer, mesmo que involuntariamente, numa certa pose kitsch).

Falámos no Porto, mas é um local particular que dá título e ambiente ao disco: a mítica Rua de Cimo de Vila, uma das mais antigas do Porto e que de rua popular e de comércio burguês se foi metamorfoseando no actual caldo multicultural com respectiva expressão comercial (indianos, paquistaneses, chineses, todos os que se ouvem em Bangla), e onde estabelecimentos históricos locais (Pensão Mondariz, Portista, Casa Louro ou a Casa Crocodilo, da qual o autor destas linhas recebeu, num idílico Natal, uma “camisola oficial” do Vítor Baía) coexistem com casas de alterne manhosas — como a que Corona abre ao público — no extremo oposto da “gourmetização” higiénica que por estes dias impera.

Desde o seu surgimento que o grupo tem conquistado públicos tradicionalmente alheios ao hip-hop, justamente pela desconstrução dos estereótipos a ele associados (tal como num filme de zombies série B, assumem-se os códigos para troçar deles) e pelo seu posicionamento galhofeiro e cáustico (quase “apunkalhado”), o que faz deles autênticas “aves raras” (forma de estar sem dúvida possível de ligar, historicamente, aos MatoZoo, emblemático grupo, já extinto, da história do rap português e cuja influência é igualmente pressentível, por exemplo, entre os artistas que compõe a crew Monster Jinx). Repetindo alguns dos convidados presentes em álbuns anteriores e hábeis no modo como juntam rappers históricos como Kron aos nomes geracionalmente mais recentes de Minus (aqui sob as vestes de Alferes M) ou Mike El Nite (insistência que contribui para o reforço do seu universo, como se os convidados já fossem eles próprios “personagens” do mesmo), assim como insistindo em samples alternativos em relação ao que é comum escutar no hip-hop (em vez de peças da soul e do funk americanos, dB trabalha com fragmentos de rock psicadélico, krautrock ou prog), a dupla volta a conseguir sacar — o que nem sempre acontece no rap — verdadeiras canções, as quais, na sua estranheza, revelam frequentemente, e de forma surpreendente, refrões orelhudos e viciantes (CV, Fruta da Ilha), para o que muito contribui o facto de Logos ser um rapper com um sentido assaz musical. Mais do que “sobre” o Porto, é um olhar “a partir” do Porto, pois a cidade está sempre a reflectir um espectro maior que é o Portugal esconso e popularucho.

Há, contudo, por debaixo de toda esta zombaria, um enorme amor a todo um país, aos seus costumes, personagens e historietas, de que é exemplo a forma como brincam (e quase reinventam, como acontece com a Frágil de Jorge Palma em Meio Crocodilo), corrosiva mas carinhosamente, com inúmeras figuras da fauna musical portuguesa, das mais conhecidas (José Cid, Rui Reininho, em Chino no Olho) às mais recônditas (o Sandro G nas ilhas, como rima o próprio dB, sob o pseudónimo de 4400 OG, em Fruta da Ilha). E pelo meio de todo este pitoresco (sur)realismo, há ainda espaço, nas entrelinhas, para uma bela e tristíssima balada sobre a pobreza (Noite de Natal em Cimo de Vila) ou uma poética observação sobre a aceleração urbana dos dias de hoje (a spoken word com que Kron fecha Bangla). Se a meta é sucessivamente mais ambiciosa, o certo é que, ao terceiro álbum (ao ritmo de um por ano), os Corona sabem manter — coisa que não é fácil — o sabor “caseiro” da sua música, como se de um grupo de amigos meios destravados a cuspir rimas numa garagem (e se esta última palavra evoca o rock, é propositado) se tratasse.