Elle, Isabelle

Isabelle Huppert pertence àquela estirpe de actor que desenha um percurso pessoal dentro de obras alheias, que faz os “seus” filmes nos filmes de outros.

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Loulou

Elle é Isabelle, ou não só mas também. É daqueles casos em que, por muito que se reconheça a força idiossincrática do realizador, se percebe que seria um filme diferente com outra actriz a interpretá-lo (e já agora, parece que Verhoeven teve outras ideias antes de chegar a Huppert, pensou por exemplo em Nicole Kidman ou Diane Lane). No seu percurso impressionante, que já leva mais de quatro décadas completas, Huppert fez muita coisa diferente mas também foi cimentando uma identidade, e uma maneira muito própria de estar frente às câmaras. Aquela singular e quase paradoxal mescla de intensidade e apatia, quando não mesmo abandono, visível num rosto que é capaz de ter uma expressão fulminante com um mínimo de recursos fisionómicos, a jogar às escondidas psicológicas com o espectador. E fisicamente, uma espécie de hiperactividade, um frenesi constante, como se os movimentos do corpo – os gestos, os passos – fossem imparáveis mesmo quando a acção narrativa aparentemente lhes pede que parem (aspecto que era já o mais notável do último filme de Mia Hansen-Love, O Que Está Por Vir, que a presença de Huppert tornava interessante quase só por si, e que voltamos a encontrar no filme de Paul Verhoeven). No cimo disto, ou ao lado disto, uma disponibilidade para o sofrimento, para as personagens em martírio ou em punição (frequentemente confundem-se), que é também uma forma de se prestar, enquanto actriz, a um jogo quase “sado-maso” com os realizadores que a dirigem e a modelam. Se Elle nos lembra Belle de Jour é mais por Huppert do que por Verhoeven, e ainda que entre Huppert e Deneuve haja uma distância considerável (são actrizes bastante diferentes), essa disponibilidade para personagens à beira da humilhação masoquística não deixa de lembrar a Deneuve de Buñuel, de Polanski ou de Ferreri.

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Elle é Isabelle, ou não só mas também. É daqueles casos em que, por muito que se reconheça a força idiossincrática do realizador, se percebe que seria um filme diferente com outra actriz a interpretá-lo (e já agora, parece que Verhoeven teve outras ideias antes de chegar a Huppert, pensou por exemplo em Nicole Kidman ou Diane Lane). No seu percurso impressionante, que já leva mais de quatro décadas completas, Huppert fez muita coisa diferente mas também foi cimentando uma identidade, e uma maneira muito própria de estar frente às câmaras. Aquela singular e quase paradoxal mescla de intensidade e apatia, quando não mesmo abandono, visível num rosto que é capaz de ter uma expressão fulminante com um mínimo de recursos fisionómicos, a jogar às escondidas psicológicas com o espectador. E fisicamente, uma espécie de hiperactividade, um frenesi constante, como se os movimentos do corpo – os gestos, os passos – fossem imparáveis mesmo quando a acção narrativa aparentemente lhes pede que parem (aspecto que era já o mais notável do último filme de Mia Hansen-Love, O Que Está Por Vir, que a presença de Huppert tornava interessante quase só por si, e que voltamos a encontrar no filme de Paul Verhoeven). No cimo disto, ou ao lado disto, uma disponibilidade para o sofrimento, para as personagens em martírio ou em punição (frequentemente confundem-se), que é também uma forma de se prestar, enquanto actriz, a um jogo quase “sado-maso” com os realizadores que a dirigem e a modelam. Se Elle nos lembra Belle de Jour é mais por Huppert do que por Verhoeven, e ainda que entre Huppert e Deneuve haja uma distância considerável (são actrizes bastante diferentes), essa disponibilidade para personagens à beira da humilhação masoquística não deixa de lembrar a Deneuve de Buñuel, de Polanski ou de Ferreri.

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Salve-se Quem Puder
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Malina
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A Cerimónia
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A Pianista

Em todo o caso, parece evidente que Huppert pertence àquela estirpe de actor que desenha um percurso pessoal dentro de obras alheias, que faz os “seus” filmes nos filmes de outros, sem os trair mas de algum modo apropriando-se deles. Um bom caso para “política de actores”, pegando numa expressão de Luc Moullet. Revisitemos, então, cinco momentos capitais do “estilo Huppert”.

Comecemos por 1980, tinha Huppert 27 anos e já o trabalho suficiente para se fazer notar por um americano, Michael Cimino, que a levou aos Estados Unidos para As Portas do Céu. Na Europa, Jean-Luc Godard preparava o seu come back ao cinema dito “normal” (com actores, “narrativa”, distribuição em moldes convencionais) depois de uma década com o Grupo Dziga Vertov e com as experiências videográficas feitas quase em reclusão. O filme era Salve-se Quem Puder e Godard queria tanto Huppert que foi pessoalmente ao Montana, onde a actriz filmava com Cimino, para a convencer. Quando Huppert lhe perguntou exactamente o que queria ele dela, ele respondeu-lhe, segundo contou mais tarde a actriz, que queria que ela fosse “o rosto do sofrimento”. Este resumo lapidar do seu papel bateu fundo em Huppert – que fala disso quase como uma epifania – e foi provavelmente no filme de Godard que começou qualquer coisa, em plena consciência, no cinema de Huppert. Há sofrimento, efectivamente, e mesmo humilhação, e em simultâneo, naquele falso erotismo, ou erotismo muito frio, típico do Godard da época, uma constante reversão e alternância dum sado-masoquismo interpretado como jogo de poder: quem manda mais, quem sofre mais, quem se impõe?

No mesmo ano de 1980 houve Loulou de Maurice Pialat, cineasta que cultivava uma ideia de modernidade bem distinta da de Godard, no seu trabalho cru e obsessivo sobre o realismo, onde a presença dos actores era fundamental. Mas Loulou também era um mergulho, um mergulho de “classe”, onde a personagem de Huppert, vinda da burguesia intelectual, trocava tudo pela paixão por um pequeno meliante, o Loulou do título, a cargo de Gérard Depardieu – e Huppert era ali o “rosto do abandono”, a trabalhar a paixão em arrefecimento, e o “abismo” classista em desprendimento.

Dez anos depois, o romantismo depressivo e flamejante de Werner Schroeter chamou por ela em Malina. Adaptação de Ingeborg Bachman, em cujo argumento trabalhou Elfriede Jelinek (que Huppert “reencontraria”, via Michael Haneke, em A Pianista). É um papel “extremo”, com uma personagem em clausura, física e psicológica, em privação e em provação, no mais corriqueiro e no mais “metafísico”. Como os cigarros que está sempre a fumar, Huppert consome-se e arde lentamente ao longo do filme, sem nunca estar verdadeiramente em chamas – só o que a rodeia.

Claude Chabrol foi dos realizadores que mais chamaram Huppert, e com ela rodou diversos filmes. A Cerimónia, de 1995, será um dos exemplos mais perfeitos dos subtis exercícios de tortura psicológica que estão no âmago de tanto Chabrol. Huppert é nele uma espécie de vilã, manipuladora, magnética, a virar a criadita Sandrine Bonnaire contra os seus patrões. O olhar vago e ao mesmo penetrante de Huppert, o seu estar indecifrável, o seu mistério, são elementos fundamentais para o sucesso do filme (um dos melhores Chabrols tardios).

E finalmente, essa via crucis (como Elle, de certa forma mais preenchida com humor negro, também é) que A Pianista, de Haneke, em 2002, e que se vê muito mais (e muito melhor) pela complexa relação, torturada e torturadora, entre as personagens de Huppert e da sua mãe, interpretada por Annie Girardot.