O romance mais completo e magistral de Zimler

O Evangelho Segundo Lázaro é, provavelmente, o romance mais completo e magistral de Zimler. É sobre uma amizade muito particular, a que une Jesus e Lázaro.

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O escritor luso-americano é um estudioso das Religiões adriano miranda

O Evangelho Segundo Lázaro, o mais recente romance do escritor luso-americano Richard Zimler, é a história ficcionada do misterioso amigo de Jesus e começa com uma maldição proferida com vigor: ninguém deverá roubar este pergaminho, sob pena de sofrer o castigo mais duro de todos, isto é, o esquecimento. Quem assim fala é esse mesmo Lázaro que, aos 57 anos e exilado em Rodes, se prepara para relatar a sua vida (e sua morte) ao neto Yaphiel. Lázaro (em hebreu El’Azar) atravessou a mais misteriosa de todas as “portas”, foi ele o escolhido, o único homem a regressar da morte, graças a Jesus (Yeshua).

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O Evangelho Segundo Lázaro, o mais recente romance do escritor luso-americano Richard Zimler, é a história ficcionada do misterioso amigo de Jesus e começa com uma maldição proferida com vigor: ninguém deverá roubar este pergaminho, sob pena de sofrer o castigo mais duro de todos, isto é, o esquecimento. Quem assim fala é esse mesmo Lázaro que, aos 57 anos e exilado em Rodes, se prepara para relatar a sua vida (e sua morte) ao neto Yaphiel. Lázaro (em hebreu El’Azar) atravessou a mais misteriosa de todas as “portas”, foi ele o escolhido, o único homem a regressar da morte, graças a Jesus (Yeshua).

Recorde-se alguma da iconografia respectiva que o retrata como um homem que passou por algo indizível e espantoso, alguém que, de certa forma, “contamina” todos os que o rodeiam. O pintor medieval Giotto mostra-o a sair do túmulo rodeado de figuras petrificadas pelo assombro — os mais próximos tapam o nariz, para se protegerem do cheiro — e muitos outros artistas fixaram esse momento, como Rembrandt, Juan de Flandes, Girolamo Muziano e Giovanni di Paolo. Em todas estas e outras representações, são visíveis o choque e a descrença, estampados no rosto dos presentes perante a figura de Lázaro, cambaleante, atordoado, de certa forma reticente por ter sido arrancado ao “grande sono”. Lázaro da Betânia morre depois de uma doença, durante a qual as suas irmãs, Marta e Mia rezam intensamente e rogam para que ele seja salvo mas Jesus não responde ao apelo, deixa passar quatro dias e só então se dirige ao túmulo e o ressuscita. Como explicar este acontecimento? Por que razão Jesus, com o seu magnífico poder, o abandona à morte? E porque deixa passar quatro dias para o retirar do sono eterno?

Para Lázaro o retomar da vida não é fácil: “Como posso estar ainda aqui? Será que todas as partes da minha alma voltaram para o meu corpo” interroga-se, constatando que, depois de morrer, “nada do que somos sobrevive” e que não guarda qualquer memória da morte.

Lázaro não segue Yeshua ben Josef (Jesus) como os outros apóstolos mas mantém com ele uma ligação mais profunda, mais íntima, mais intensa — ouve contínua e distintamente a sua voz a falar-lhe dentro da sua cabeça — uma relação de profundo amor. Não é um santo, é um homem normal, com as fraquezas, as cóleras, os ímpetos, os desejos, as paixões de qualquer ser humano. É um estudioso das Escrituras, um artista, um trabalhador (ladrilhador), um homem de acção que se preocupa com a família, com os filhos, com o avô, com a sua comunidade. O facto de ter sido o objecto do mais extraordinário milagre atribuído a Jesus torna-o, por um lado, o objecto de devoção de muitos — que lhe pedem a bênção a cada passo — e, por outro, um alvo a abater. Nem os romanos nem os sacerdotes do Templo judaico desejam que uma prova viva dos poderes de Jesus — esse Yeshua que incendeia a Galileia com os seus ensinamentos e exemplo — continue a aumentar a sua fama, galvanizando um povo martirizado e desesperado.

Nesta obra extremamente complexa, o autor permite a realização de várias leituras que se cruzam e complementam, com uma intensidade e realismo que denotam a mestria do autor. Em primeiro lugar, trata-se de um “romance histórico” em que tudo é recriado ao pormenor: a vida quotidiana no tempo de Jesus, os detalhes domésticos, a paisagem, os eternos conflitos políticos, religiosos, sociais e pessoais que sempre assolaram o Médio Oriente. Em seguida, temos a recriação do episódio do Evangelho Segundo S. João, capítulo 11, a narrativa central dos sete “sinais” que exemplifica o poder de Jesus sobre o “maior e mais inevitável inimigo da humanidade, isto é, a morte”; o que permite uma leitura de cariz religioso e filosófico. Richard Zimler é um estudioso das Religiões e desenvolve aqui muitas das ideias que colocam em confronto, ou em questionamento, as crenças judaica e cristã, sem fazer concessões a qualquer delas.

A História pode ser contada de muitas maneiras, o ser humano é sempre o ser humano na sua infinita (im)perfeição e o amor é sempre o Amor, sentimento glorificado que aqui se reveste de várias subtilezas, tal como a sua variante, a amizade. Zimler é, ainda, um especialista da Cabala, com os seus ensinamentos esotéricos que explicam a relação entre o imutável, eterno e misterioso Ein Sof (infinito) e um universo finito e mortal que é obra da criação de Deus, algo que é parte integrante do judaísmo.

Neste livro, que é também sobre a culpa, sobre a traição e sobre as maquinações mais perversas — Caifás, o Sumo Sacerdote a braços com a insurreição dos zelotas, e os colonizadores romanos são nitidamente os verdugos, os opressores impiedosos —, Zimler consegue a proeza de manter o leitor em suspenso, como num “policial”, apesar de obviamente conhecermos o desfecho. Outro aspecto importante é a destreza com que o autor trata a linguagem ou, mais propriamente, as múltiplas linguagens. Num espaço temporal e geográfico multicultural, onde línguas diversas — aramaico, grego, hebraico, latim — correspondem a outras tantas culturas, a exploração desta diversidade enriquece o texto. Há, ainda, a linguagem simples, própria do contacto diário entre membros da mesma família, entre amigos, sobre as tarefas e os mesteres, as preocupações, as alegrias, as exclamações a propósito de algo engraçado ou ternamente incomum, mas também a linguagem do sagrado, do que é misterioso e oculto, passando pela linguagem interior reservada aos eleitos e pela linguagem poética própria do assombro perante as maravilhas do universo, face à inexcedível beleza da natureza e aos mais elevados sentimentos do ser humano como o amor, a amizade e a compaixão.

Aliás, este romance é essencialmente sobre uma amizade muito particular, a que une Jesus e Lázaro, desde os tempos em que eram ambos crianças, quando brincavam juntos e quando Lázaro salvou Jesus de morrer afogado. O forte amor e a cumplicidade que os une permitem-lhes uma tal comunhão que é como se habitassem juntos uma ilha imaginária que funciona como um poderoso símbolo da sua união. (O trecho, quase no final do livro, em que Lazaro vai descrevendo o Calvário, possui tal intensidade que o sofrimento de Jesus é transmitido ao leitor com uma violência que espelha a dor de Lázaro, o qual, em agonia, imagina que vai beijando e tocando em Jesus, “para saber onde ele começa e termina, porque só conhecendo essas coisas desaparecerão as fronteiras entre nós, e eu serei o que observa e é observado, o amante e o amado — e a morte não lhe porá fim, porque ele viverá dentro de mim para sempre …” (pág.371). Não será displicente notar que a carga erótica desta e doutras cenas é tão avassaladora que remete para a revolucionária noção de que a união dos corpos — tal como a dos espíritos — é um acto do foro do sagrado.

O Evangelho Segundo Lázaro é, provavelmente, o romance mais completo e magistral de Zimler, um testemunho e uma meditação em torno das questões que sempre o acompanham e que atravessam toda a sua obra: a eterna luta entre o Bem e o Mal, entre a voragem carnal e a ânsia do divino, entre a fé e a descrença, o poder do amor como sentimento central no relacionamento humano, a tolerância, a revolta contra a tirania e a prepotência e, finalmente, uma gloriosa ideia de redenção que, aqui, se encontra na misteriosa “dádiva” deixada por Jesus ao seu amigo, dádiva essa que ele deverá procurar num dos lugares malditos de Jerusalém. “Os déspotas do nosso mundo têm medo dos homens que insistem em narrar as suas próprias histórias até ao fim” (pág. 372), diz Lázaro, aquele que não permite que o esquecimento — ou a distorção da verdade — se apodere de nós, todos inevitavelmente iguais no momento decisivo da morte.