Com Raul Brandão, a olhar para este ano de 2016

Os Pescadores, que João Sousa Cardoso estreia esta quinta-feira no Rivoli, partiu da obra homónima que o escritor publicou em 1923— e de uma jornada em alto mar.

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Não foi fácil o último 23 de Junho para João Sousa Cardoso, Ricardo Bueno e Vinicius Massucato: 18 horas em alto mar num barco de pescadores das Caxinas, muitos enjoos, muitos vómitos, muitos olhares para o relógio a “ver quando aquilo acabava” (ou como fazer uma introdução mais ou menos hardcore da pesca em Portugal à atenção de um brasileiro de São Paulo, Vinicius Massucato).

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Não foi fácil o último 23 de Junho para João Sousa Cardoso, Ricardo Bueno e Vinicius Massucato: 18 horas em alto mar num barco de pescadores das Caxinas, muitos enjoos, muitos vómitos, muitos olhares para o relógio a “ver quando aquilo acabava” (ou como fazer uma introdução mais ou menos hardcore da pesca em Portugal à atenção de um brasileiro de São Paulo, Vinicius Massucato).

“Mais do que uma observação foi uma experiência física, animal. Fica-nos na carne”, recorda o encenador João Sousa Cardoso. Foi uma das experiências coleccionadas entre Junho e Setembro numa residência artística nas Caxinas, Vila do Conde, no âmbito do Circular Festival de Artes Performativas. Aí germinou a peça que estará entre esta quinta-feira e o próximo sábado no pequeno auditório do Rivoli – e que teve como ponto de partida o livro homónimo de Raul Brandão, Os Pescadores, documento de 1923 sobre o quotidiano de comunidades piscatórias portuguesas.

Apesar deste enquadramento, o encenador, João Sousa Cardoso – que volta ao Teatro Municipal do Porto depois de Teatro Expandido!, projecto de longa-duração realizado ao longo de 2015 –, faz questão de sublinhar que este espectáculo não é sobre os pescadores ou sobre a pesca. É um “trabalho metateatral” em que se abre espaço para evocar, entre outras coisas, as cartas trocadas entre Agustina Bessa-Luís e José Régio, nas suas relações com Vila do Conde e o mar, e pôr em confronto dois vocabulários teatrais distintos, o do actor português Ricardo Bueno e o do brasileiro Vinicius Massucato. Mas é sobretudo sobre “a ideia de liquidez na contemporaneidade e como o homem consegue enfrentar a brutalidade da natureza e ter em si a força primordial que o faz sobreviver, tanto em 2016 como no Paleolítico”, diz Sousa Cardoso. O texto de Raul Brandão, adaptado aqui de forma livre, serviu como pretexto para reflectir sobre outros assuntos, com o olhar em 2016. “’Os pescadores sabem mais com os olhos fechados do que os técnicos com os olhos abertos’: o Vinicius termina a peça com esta passagem do Raul Brandão. É um manifesto sobre o que vivemos, sobre o domínio da tecnociência”, aponta. “A técnica é fantástica, mas só se estiver ao lado do primordial.”

Interrogar os códigos de virilidade e as construções de masculinidade tradicionais funciona como outra linha de montagem de Os Pescadores, que arranca com os dois actores numa dança homoerótica (continuada ao longo da peça por Massucato), ao som de I’ve told every little star, de Linda Scott, e inspirada no momento inicial da curta-metragem La Ricotta, de Pier Paolo Pasolini. “Num barco em alto mar a noção de virilidade e masculinidade é abalada. Quando há um ambiente concentracionário de um género, esse género é colocado em crise e essas crises baralham os papéis tradicionais”, considera João, acrescentando que Raul Brandão já tinha “pressentido essas linhas de fuga”.

Além da precariedade da vida do pescador, a precariedade no teatro também anda por aqui. “Vão assistir a um espectáculo amputado”, anuncia Vinicius em palco: esta peça é o primeiro capítulo de um díptico que não vai acontecer “por falta de acordo com produtores”. “Ética e politicamente é importante que o público saiba que está a ver um trabalho que não terá o seu desenvolvimento natural, mas que espero que ganhe autonomia”, diz o encenador. Será melhor, portanto, ver Os Pescadores como um exercício, como uma peça de câmara “em estaleiro diante dos olhos do público”.