Philip Roth volta à casa de partida

“Em que outro lugar poderia estar a minha biblioteca pessoal?”, perguntou Roth na carta em que justifica a doação de quatro mil livros à cidade de Newark onde nasceu. Zadie Smith inaugurou o novo espaço. Isto, quando se edita em Portugal Quando Ela Era Boa, o terceiro romance do escritor.

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Bob Peterson/The LIFE Images Collection/Getty Images

O ano de 1969 foi de libertação, de possibilidade, mas também de confirmação de mais um grande paradoxo americano. O homem chegava à Lua, mas continuava por se fazer a evolução de costumes. Entre os impensáveis estava o assumir de um certo modo de ser adolescente numa cidade próxima de Nova Iorque. “Não era possível ser-se Portnoy no mundo, pelo menos não era possível ser Alexander Portnoy em Newark. Não, um rapaz judeu de Newark não podia ser desbocado, obcecado por sexo, brincalhão e impiedoso, masturbar-se”, usando para o efeito uma imaginação fértil e todo o tipo de adereços, onde se incluía um pedaço de fígado. E, no meio de tudo isto, ainda odiar a mãe. A associação entre o futurismo espacial e científico e a vigilância dos comportamentos, sobretudo sexuais, na mesma época foi feita pela escritora Zadie Smith, que definiu O Complexo de Portnoy, quarto romance de Philip Roth, como simbólico enquanto capaz de derrubar barreiras culturais e de comportamento e também narrativas — pelo modo como fez uso do “eu” na literatura, despudoradamente e não enquanto autobiografia. “Ao dizer ‘eu’ de um certo modo, de um modo ficcional, Roth tornou possível, através de Portnoy, um novo tipo de ‘eu’ no mundo, uma dádiva de liberdade”, disse Zadie Smith, a escritora que Roth escolheu para inaugurar a série de leituras anuais no lugar que irá receber a biblioteca pessoal do escritor. Nada mais do que a Newark Public Library, na sua cidade natal.

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O ano de 1969 foi de libertação, de possibilidade, mas também de confirmação de mais um grande paradoxo americano. O homem chegava à Lua, mas continuava por se fazer a evolução de costumes. Entre os impensáveis estava o assumir de um certo modo de ser adolescente numa cidade próxima de Nova Iorque. “Não era possível ser-se Portnoy no mundo, pelo menos não era possível ser Alexander Portnoy em Newark. Não, um rapaz judeu de Newark não podia ser desbocado, obcecado por sexo, brincalhão e impiedoso, masturbar-se”, usando para o efeito uma imaginação fértil e todo o tipo de adereços, onde se incluía um pedaço de fígado. E, no meio de tudo isto, ainda odiar a mãe. A associação entre o futurismo espacial e científico e a vigilância dos comportamentos, sobretudo sexuais, na mesma época foi feita pela escritora Zadie Smith, que definiu O Complexo de Portnoy, quarto romance de Philip Roth, como simbólico enquanto capaz de derrubar barreiras culturais e de comportamento e também narrativas — pelo modo como fez uso do “eu” na literatura, despudoradamente e não enquanto autobiografia. “Ao dizer ‘eu’ de um certo modo, de um modo ficcional, Roth tornou possível, através de Portnoy, um novo tipo de ‘eu’ no mundo, uma dádiva de liberdade”, disse Zadie Smith, a escritora que Roth escolheu para inaugurar a série de leituras anuais no lugar que irá receber a biblioteca pessoal do escritor. Nada mais do que a Newark Public Library, na sua cidade natal.

Com o título O Eu Que não Sou Eu, Smith centrou o seu texto na questão da identidade, tema central na literatura de Roth, o autor natural de Newark, onde nasceu em 1933, que deu a essa geografia protagonismo em quase toda a sua obra; um judeu que dissecou o judaísmo na América e, com Saul Bellow, tornou possível um autor judaico ser considerado um dos grandes escritores da América; alguém que levou para a ficção muitas das obsessões pessoais, escrevendo a partir da primeira pessoa do singular. Um jogo incrivelmente eficaz, em que se está sempre, mesmo de forma inconsciente, à procura do escritor nas personagens.

“Cometi os mesmos erros que um leitor ‘civil’. Confundo sempre Portnoy com Philip Roth”, afirmou Zadie Smith, sintetizando a confusão que esse “eu” ficcional provoca e que a levou a adiar até agora o uso do “eu” na sua ficção. Mas, ao quarto romance, Zadie escreve na primeira pessoa. Swing Time é esta semana lançado no mercado anglo-saxónico e chegará a Portugal em 2017 com a chancela D. Quixote. “Tentei encontrar um lugar para o ‘eu’ que não sou eu enquanto escritor”, continuou antes de dizer que Roth foi, nessa procura, um exemplo que assenta naquilo que entende por literatura: um espaço onde as impossibilidades pessoais são tornadas possíveis através de personagens.

Tudo na leitura de Zadie Smith se ajustava ao lugar e à decisão, formalmente anunciada a 27 de Outubro, de Philip Roth doar os quatro mil livros da sua biblioteca pessoal para o lugar onde se formou enquanto leitor e que foi cenário de um dos seus primeiros textos de ficção, reunidos em Goodbye Columbus (original de 1959). Nesse conto, ou novela, Neil Klugman, o narrador, é um trabalhador temporário da biblioteca de Newark, vive com os tios num bairro operário próximo do número 5 da Washington Street, e apaixona-se por uma estudante universitária, Brenda Patimkin, filha de boas famílias de um subúrbio rico dos arredores.

Roth explora aí um tema que irá retomar noutras obras: a diferença de classes na América. Conheceu aquele ambiente enquanto estudante de liceu e, mais tarde, aluno da Universidade de Rutgers, quando já frequentava o imponente edifício inaugurado em 1901, espécie de réplica de um palácio renascentista, e sede da biblioteca pública. É um espaço onde num dia de semana se vêem estudantes, homens e mulheres solitários que vão ler o jornal, sem-abrigo que encontram ali lugar onde passar umas horas com um livro ou a usar um computador. Ocupa um lugar central numa comunidade mais pobre e excluída do que a dos anos 40 e 50 quando Roth ali vivia. A opulência inicial e uma certa decadência presente contrastam num ambiente nostálgico que agora recebe uma inesperada dose de vitalidade. Vai receber, depois da morte do escritor, actualmente com 83 anos e sem filhos, a sua colecção de livros, retribuição por tudo o que aquele edifício lhe deu. “Ele enfrenta a sua mortalidade com enorme vigor e quis garantir que os seus livros não ficassem dispersos e estivessem num lugar seguro após a sua morte”, disse ao Ípsilon o escritor Benjamin Taylor, amigo de Roth, que o representou na sessão, lendo as palavras com que o autor de A Pastoral Americana justificou uma decisão que o presidente do Conselho da Biblioteca de Newark, Tim Crist, considera pouco comum. “Não conheço escritores com a qualidade e a notoriedade de Philip Roth que tivessem tido uma atitude semelhante.” 

Em que outro lugar?

A carta de Roth era breve. “A minha decisão de deixar a minha biblioteca pessoal em Newark, especificamente na Newark Public Library, foi determinada por um sentimento de gratidão antigo para com a cidade onde nasci em 1933 e onde fui criado no Bairro de Weequahic no meio do século passado. Tive uma infância feliz aqui. Durante os meus anos de escola vivi em duas casas, primeiro na Summit Avenue até aos nove anos, depois na Leslie Street”, escreve, sublinhando um tom familiar, pensado para uma audiência que sabe localizar cada um desses lugares onde viveu até terminar o liceu. Identifica a dependência da biblioteca onde desde o sexto ano, duas vezes por mês, se dirigia de bicicleta para requisitar um monte de “livros para ler por prazer”. Eram “sobretudo romances”, no início “grandes livros sobre baseball de John Tunis e as histórias dos mares de Howard Pease, depois a escrita humorística de Nathaniel Benchley e S. J. Perlman, as crónicas de guerra de Ernie Pule e o cartoonista de frente de batalha Bill Mauldin, e mais tarde ainda as sátiras insuportáveis de Philip Wylie, os romances históricos esquerdistas de Howard Fast, e talvez pelo sétimo ou oitavo anos as extravagâncias atribuladas, hipnoticamente intensas do meu primeiro herói literário — e nesses anos o herói literário de toda a gente — Thomas Wolfe”. 

Como sublinha a carta, a relação de Roth com aquele lugar é de formação do homem e do escritor, que se consolidou no ano em que andou na universidade, junto ao edifício-sede da biblioteca. “Durante as muitas horas de cada dia em que não tinha aulas, acampava nas salas (...) do edifício principal da biblioteca sempre que queria um lugar tranquilo para estar sozinho a ler, a estudar ou a fazer pesquisas. Era a minha outra casa em Newark. A minha primeira outra casa. Pergunto-vos: em que outro lugar poderia estar a minha biblioteca pessoal?”

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No novo espaço ninguém estará excluído de poder abrir os livros que Roth leu e sublinhou e os que considerou determinantes para a sua história literária Bob Peterson/The LIFE Images Collection/Getty Images

Os quatro mil livros serão colocados numa sala que está ser desenhada pelo arquitecto Henry Myerberg, pensada de modo a que o que inspirou Roth enquanto escritor “possa ser visível e manuseável, que diga qualquer coisa sobre a sua disciplina de escrita e o como a leitura é importante para se ser um escritor”. “Queremos que este seja um lugar de descoberta e de discussão”, sublinhou Tim Crist, emocionado com a doação, sobre um espaço que Myerberg classifica como o oposto de um museu e que estará aberto a estudantes, investigadores, amantes de literatura e de Roth. Ninguém estará pois excluído de poder abrir os livros que ele leu e sublinhou e os que considerou determinantes para a sua história literária.

E tudo estará arrumado seguindo os critérios de Roth: ficção, manuscritos de romances, os livros fulcrais para a sua formação, os que serviram de pesquisa para livros que escreveu. “Alguns são livros de iniciação, como os de Thomas Wolfe — que chegou a ser considerado dos maiores escritores americanos e que hoje quase ninguém lê por se achar a sua prosa excessiva —, Na Minha Morte, de William Faulkner, ou O Adeus às Armas, de Hemingway”, sublinha Benjamin Taylor, que conheceu Roth quando lhe escreveu uma carta a agradecer-lhe ter escrito um romance. “Foi em 1999, depois de ter lido Casei com Um Comunista [D. Quixote, 2010]. Foi um livro que me tocou bastante e quis agradecer-lhe. Só isso. Mas um dia o telefone tocou e era alguém a dizer que era Philip Roth.

E era”, conta o autor de Proust: The Search, biografia de Marcel Proust (2015), sobre o princípio de uma conversa que ainda não terminou e que se vai alimentando de música. “Quando ele se mudou no ano seguinte para Nova Iorque e começou a passar mais tempo por cá, a nossa amizade reforçou-se, começámos a falar de Bártok e Chostakovitch e muita outra música de câmara de que gostamos. Sempre música de câmara. E ir a concertos. Nunca o consegui convencer acerca da música barroca ou da ópera”, continua Taylor, que remete para o texto de Zadie Smith acerca do “eu” na literatura. “O trabalho com o ‘eu’ dá-lhe muito prazer e acho que nunca tanto quanto Operation Shylock — a Confession (1993)”, diz, referindo-se ao romance que segue o narrador, cujo nome é Philip Roth, numa viagem a Israel onde se vê envolvido numa missão secreta. “O meu sentimento em relação aos escritores em geral que usam a primeira pessoa, entre os quais incluo também Roth e agora a própria Zadie Smith, é que o fazem não para serem autobiográficos, mas para imaginarem uma intimidade enquanto outro ‘eu’. Que se tente encontrar aí traços biográficos, tudo bem, mas o prazer maior vem de entender esse trabalho enquanto invenção.” Por tudo isto acha necessário acrescentar: “Quando as pessoas conhecem Philip Roth, esperam conhecer a lenda com todas as suas particularidades, as ficcionais e as que pensam que são reais, e não é assim. É um homem muito privado, bastante modesto; alguém que adora estar em casa e um grande apreciador de comida. Quando estou com ele, esqueço-me de que estou na presença de um grande escritor, mas antes de um grande amigo.” 

Na terceira pessoa

No universo literário de Roth esse jogo de identidades é mais complexo, porque tudo se mistura. Estamos na Newark real, que é também a da sua ficção e que, como sublinha Benjamin, o formou e enforma a sua obra: “Foi a partir daí que a sua visão do mundo se construiu e a lógica é que ela agora volte a gerar mais coisas a partir deste local.” O “eu” de Roth já estava em Goodbye Columbus, ganhou vida própria com uma personagem como Alexander Portnoy, foi trabalhado em todos os romances da série Zuckerman, seu alter-ego, e escreveu por uma vez na terceira pessoa sobre uma protagonista feminista. E, nesse caso, não foi um “eu”, como se precisasse de guardar uma primeira pessoa sem mácula para o adolescente desafiador de costumes de Newark que haveria de ser Alexander Portnoy. Falamos do romance que antecedeu O Complexo de Portnoy e que acaba de ter edição em Portugal, Quando Ela Era Boa, um original de 1967 sobre uma protestante do Midwest que procura a perfeição segundo os ideais da família e da sociedade em que vive. Através dela, Roth explora as contradições entre o íntimo — confessável e inconfessável — e o modelo feminino da época segundo um padrão conservador. 

Quando Ela Era Boa é um apurado um exercício de observação social feito em forma do que se poderia chamar “um drama familiar e de época” centrado na figura de Lucy Nelson, a protagonista que quer ser boa pessoa de modo obsessivo, e que gere expectativas alheias, intenções próprias de submissão e uma forte tendência para a independência. “Se ao menos dissessem não. NÃO, LUCY, NÃO PODES. NÃO, LUCY, NÓS PROIBIMOS–TE. Mas parecia que já nenhum tinha a convicção necessária, ou a persistência, para se oporem a uma decisão sua. Para conseguir sobreviver, havia muito tempo que tinha imposto a sua vontade à deles — tinha sido a batalha da sua adolescência, mas agora havia acabado. E ela havia vencido. Podia fazer aquilo que lhe desse na gana — incluindo casar–se com alguém que no seu íntimo desprezava.”  

A forma do livro serve ao autor para escrever sobre o declínio de um modelo social e questionar muitos dos ideais da América que, lidos ao olhos da actualidade — quase 60 anos depois da publicação do livro —, permanecem: o papel da mulher, da religião, a frustração da classe média, o sonho, a importância do indivíduo, no caso enquanto pertença de uma família. 

Ver este Philip Roth chegar neste momento particular da vida do escritor e do seu país  é um privilégio — por exemplo, poder ler um dos seus romances iniciais e confirmar a sua capacidade invulgar para relatar a América.