White trash, ou a pobreza enquanto tradição americana

Brancos, pobres, sem instrução, vivem em comunidades economicamente decadentes e lembram a verdade incómoda: a pobreza é tão antiga na América quanto a própria América.

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Os olhos levantaram-se enquanto as bocas continuavam a sorver a sopa. Homens e mulheres debruçados sobre a mesa num restaurante de uma pequena cidade do Ohio reagiam assim, em silêncio, a um estranho que entrava. Nem uma palavra, só um olhar a seguir e a avaliar cada movimento. Vivem ali, raramente saem e desconfiam de quem vem de fora. Pela geografia, pelo ambiente socio-económico enquadram-se na definição geral do que são os hillbillies: operários, brancos, sem formação universitária. "Para esta gente, a pobreza é uma tradição familiar - os seus antepassados ganhavam à jorna na economia esclavagista do Sul, mais tarde foram rendeiros, e depois trabalhadores nas minas de carvão, e maquinistas e operários fabris nos anos mais recentes. Os americanos chamam-lhes hillbillies, rednecks ou white-trash. Eu chamo-lhes vizinhos, amigos e família."

Quem diz disto é um homem de 31 anos, chama-se J. D. Vance e conta num livro como é nascer e crescer nesta cultura. Hillbilly Elegy, a Memoir of a Family and Culture in Crises foi publicado em Junho nos Estados Unidos e está a ser lido como um dos mais profundos testemunhos do que é pertencer a uma comunidade à qual o agora Presidente Donald Trump dirigiu grande parte do seu programa e do seu discurso, e que nas horas imediatas aos resultados eleitorais foi apresentada pelos comentadores como a grande protagonista da sua eleição. O próprio Vance assumiu isso, logo na manhã seguinte e nas páginas do New York Times. "A classe trabalhadora branca de Rust Belt acabou de tornar Donald J. Trump presidente-eleito dos Estados Unidos."

Rust Belt designa a região nordeste e Midwest dos EUA que entrou em declínio económico após a crise industrial, provocando o encerramento de muitas fábricas e consequente perda de postos de trabalho. É esse o território natural de J. D. Vance, que no seu livro conta como conseguiu estudar em Yale e contrariar as estatísticas que apontam um futuro cruel para rapazes como ele: viver de apoio social ou morrer com uma dose de heroína em zonas onde o consumo de droga se transformou numa catástrofe social. "Cresci pobre no Rust Belt, numa cidade siderúrgica do Ohio, desde que me consigo lembrar, em hemorragia de emprego e de esperança", escreveu na introdução ao livro que o levou às principais cadeias de televisão e rádio, a dar entrevistas a jornais e revistas para falar, por exemplo, do que é sentir que não se tem controlo sobre a própria vida e culpar todos os outros - e não a si próprio - por isso.

Colocando o foco na questão de classe e não na racial, J. D. Vance afirma que o seu livro é sobre "o que acontece na vida de pessoas reais quando a economia industrial se desloca para Sul", e sobre reagir a circunstâncias más da pior maneira possível. Conclui: o livro é "sobre uma cultura que cada vez mais encoraja a degradação social em vez de a combater". Este é o mesmo Vance, assumidamente conservador, que, na manhã do último dia 9, acusou parte dos media e dos líderes de opinião de não entenderem que possa haver outras motivações que não o racismo a fazer com que muitos americanos brancos, pobres tivessem votado em Trump. "(...) A degradação sentida em certos cantos do país não tem a ver apenas com a economia; é acerca de cada aspecto da vida - desde a família à esperança de vida, ao consumo de droga que tem afectado as comunidade. O sentimento partilhado por grande parte dos líderes de opinião de verem as nossas preocupações enquanto resultado de estupidez, na melhor das hipóteses, ou de racismo, na pior, confirma os piores receios de muitos. Eles sentem realmente que as elites costeiras [da Costa Leste e Oeste] não se importam com eles, o que muitos entre essas elites parecem consentir."

A vida de pessoas reais

Filho de pais separados, J. D. Vance foi criado itinerante por uma mãe toxicodependente e durante a sua infância conta que conheceu quinze padrastos. Foi com os avós, na cidade de Middletown, sudoeste do Ohio, junto à fronteira com o Kentucky, que conheceu alguma estabilidade e solidificou a sua identidade. "Posso ser branco, mas não me identifico com os WASPs [acrónimo em inglês para branco, anglo-saxónico, protestante] do Nordeste. Identifico-me em vez disso com milhões de operários brancos americanos sem grau académico, descendentes de escoceses e irlandeses", um dos subgrupos que considera "mais diferenciados da América" e dentro do grupo mais pessimista de todos: o da classe operária branca, sem formação académica que votou maioritariamente em Donald Trump (67%). Um grupo, afirma Vance "socialmente mais isolado do que nunca" e que "passa esse sentimento aos filhos”, que possui um forte sentimento de lealdade, é dedicado à família e ao país. Mas...

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"Não gostamos de forasteiros ou pessoas diferentes de nós, seja uma diferença em relação ao aspecto, ao comportamento, ou, mais importante, ao modo como falam", diz J. D. Vance assumindo uma pertença ao grupo mesmo quando o grupo hoje o olha como uma espécie de traidor por ter saído. E a saída foi inscrever-se nos Marines e ir para o Iraque. Quando regressou, foi para a Universidade do Ohio e daí para Yale, uma das universidades da Ivy League. Lá, conheceu a sua mulher, alguém fora do seu grupo, com quem vive em S. Francisco.

Vance acentua a importância justamente da linguagem para contar este estrangulamento de classe, mas também regional e social. “Na nossa sociedade tão racialmente consciente, o nosso vocabulário quase sempre se limita à cor da pele de alguém — negros, asiáticos, brancos privilegiados. Muitas vezes estas categorias são úteis, mas para entender a minha história é preciso ser mais detalhado." A gente de Vance vive ao longo dos montes Apalaches, a gigantesca cordilheira de 2400 quilómetros que começa no Canadá e atravessa vários estados americanos: Nova Iorque, Pensilvânia, Ohio, Pensilvânia, Kentucky, Tennessee, Virginia, Maryland, West Virginia, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Georgia, Alabama. "Mais pessimistas do que os imigrantes latinos, muitos dos quais vítimas de uma pobreza impensável. Mais pessimistas do que os negros americanos, para quem as expectativas materiais continuam atrás das destes brancos. Enquanto a realidade permitir algum grau de cinismo, o facto de hillbillies como eu serem mais sombrios em relação ao futuro do que outros grupos - mesmo muitos deles sendo mais miseráveis do que nós — indica que alguma coisa se está a passar”, refere J. D. Vance, transferindo a questão para fora do racismo e considerando que todos os discursos políticos à volta da questão rácica - com toda a carga de culpa, ressentimento, preconceito — têm dificultado e manietado um discurso lúcido sobre a pobreza e o modo como cada americano a vê. E a pobreza atravessa todas as etnias na América, como se entende da leitura de Hillbilly Elegy, mas também de White Trash: the 400-Year Untold History of Class in America, da historiadora Nancy Isenberg.

Perceber os códigos

Enquanto o livro de Vance é um relato biográfico — pessoal e familiar — o de Isenberg é um trabalho académico que problematiza e coloca em contexto a pobreza enquanto fenómeno associado a um termo: white trash, ou lixo branco que designa os ignorantes, os irredutíveis, os de uma “crueldade congénita”, apenas capazes de replicar a vida em que nasceram e que corresponde, por exemplo, ao estereótipo da rapariga branca de ar enraivecido que insulta publicamente Elizabeth Eckford quando esta se dirige ao liceu de Little Rock, Arkansas, no momento em que foi permitido a um grupo de alunos negros frequentar uma escola para brancos.

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Sabe-se que essa rapariga branca nascera e crescera num cenário de extrema pobreza. Era o padrão adaptado ao seu tempo, do branco que servia na fazenda de escravos com trabalhos. “Qualquer seja o tempo, white trash lembra-nos de uma das mais desconfortáveis verdades americanas: a pobreza está sempre connosco”, afirma Isenberg, que coloca a questão de classe como um dos grandes geradores de tensão social do país. Sublinha que o cruzamento entre classe e raça é central para que se conte a história completa, mas enquanto o racismo é encarado como algo a combater por parte do discurso político, a pobreza é geralmente vista como “estando além do controlo humano”.

Partindo de exemplos concretos, a professora da Universidade do Louisiana traça um quadro complexo mas claro do modo como a classe é vivida e entendida na sociedade americana. “Por detrás da ira e da ignorância brancas, está uma longa e complicada história de classe e de identidade que data do período da América colonial até às noções britânicas de pobreza.” E depois o estigma, por incapacidade de adaptação ou inabilidade em criar riqueza. Por isso, tal como J. D. Vance, Isenberg insiste na importância de se perceber os códigos. Termos como trash ou waste (desperdício ou sobra) para designar estes brancos pobres “são cruciais para entender o vocabulário poderoso e duradouro”, escreve Isenberg, alertando ainda que não é mais possível “ignorar a estagnação e o lado descartável” associado às camadas mais baixas da sociedade como fundamentais para “explicar a identidade nacional”.

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A "Economist" refere-se a "Hillbilly..." como o livro que importa ler em 2016. Para o "NYT", "White Trash..." é “extraordinário e fidedigno à realidade… um título necessário". Ambos podem ser encomendados na Amazon

Os livros de Vance e de Isenberg foram lançados antes das convenções republicana e democrata, antes da campanha, e são, isolados ou em conjunto, um óptimo auxiliar para tentar perceber a América que acabou de eleger o único candidato que “tentou pelo menos”, como referiu Vance, falar para estes hillbillies ou para os white trash, coisa que não acontecia há décadas.