“Perdões” fiscais deram 3000 milhões ao Estado em 12 anos
São a “derradeira oportunidade”, mas acabam sempre por se repetir. “Perdões” fiscais têm sido um isco dos governos para garantir receita dada como perdida, mas também têm custos para o Estado.
Primeiro, foi o Plano Catroga em 1994; a seguir, o Plano Mateus em 1996; mais tarde, o Plano Ferreira Leite em 2002; depois, deixaram de ter nomes de ministros, mas a cadência dos planos de regularização de dívidas conhecidas e desconhecidas do fisco continuou, até o actual Governo lançar o Programa Especial de Redução do Endividamento ao Estado (PERES), aberto até 20 de Dezembro.
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Primeiro, foi o Plano Catroga em 1994; a seguir, o Plano Mateus em 1996; mais tarde, o Plano Ferreira Leite em 2002; depois, deixaram de ter nomes de ministros, mas a cadência dos planos de regularização de dívidas conhecidas e desconhecidas do fisco continuou, até o actual Governo lançar o Programa Especial de Redução do Endividamento ao Estado (PERES), aberto até 20 de Dezembro.
Pelo meio, houve um outro plano de pagamento de dívidas ao fisco e à Segurança Social (o chamado RERD de 2013) e, nos anos anteriores, três regimes excepcionais de regularização tributária (RERT), que, tendo uma natureza diferente, permitiram num curto espaço de tempo (2005, 2010 e 2012) a regularização de património detido fora do país e não declarado ao fisco, o que não acontece no caso do PERES.
Com a sucessão de programas “excepcionais”, e independentemente das diferenças e da discussão que sempre emerge sobre estar ou não em causa um “perdão” fiscal, sobressaem os números da receita extraordinária que ajuda as contas públicas. Desde que o euro está em circulação, em 2002, o Estado português já encaixou 3000 milhões de euros com estas medidas “especiais” ou “excepcionais” (os RERT e os RERD).
Um balanço desde o Plano Ferreira Leite mostra que os programas mais eficazes na captação de receita extraordinária são os planos de regularização de dívidas ao fisco e à Segurança Social, que ficaram sempre acima dos mil milhões de euros, por contraponto aos RERT, cuja receita foi sempre bem menor, não chegando num dos casos aos 50 milhões de euros.
“É sempre o ‘aperto orçamental’ que determina estas soluções”, interpreta o fiscalista João Espanha, considerando que este tipo de medidas se dirige “nitidamente a captar receita difícil de cobrar” tão depressa quanto possível.
Reduzir contencioso
Mas se é verdade que há um aumento das receitas nos cofres do Estado de forma directa, esse não é o único objectivo de um programa como o PERES, salienta a fiscalista Cidália Mota Lopes, professora de política fiscal no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra (ISCAC). “Não menos importante”, diz, há “uma redução de custos de contexto e de cumprimento para as empresas e famílias, por via da diminuição dos custos de contencioso associados à cobrança coerciva das dívidas dos contribuintes”.
Ainda antes da era do euro, o mais emblemático plano de regularização de dívidas fiscais e à Segurança Social – que tomou o sobrenome do então ministro da Economia Augusto Mateus no primeiro Governo socialista de António Guterres, onde o actual executivo foi beber a modalidade de pagamento a prestações prevista no PERES – rendeu aos cofres públicos cerca de 1300 milhões só nos primeiros cinco anos (de 1996 a 2000).
Chegados a 2002, com Manuela Ferreira Leite à frente do Ministério das Finanças, é aprovado um novo plano para os contribuintes resolverem as situações de incumprimento perante o fisco e a Segurança Social beneficiando de uma dispensa dos juros e uma redução das coimas. Pressionado a reduzir o défice nesse primeiro ano da legislatura, o Governo de Durão Barroso acabaria por conseguir aqui um bónus de 1100 milhões, então cerca de 0,8 pontos percentuais do PIB. Como o Governo decidiu estender o programa por mais alguns dias de Janeiro de 2003, nas contas do ano seguinte entraram mais 146 milhões, segundo dados do Banco de Portugal, que mostram um impacto positivo no défice de 0,2 pontos percentuais do PIB.
No Plano Ferreira Leite, boa parte do valor encaixado, cerca de 40%, correspondeu a IRC, segundo o balanço divulgado na altura pela ministra das Finanças. No programa de 2013, ao qual aderiram 54 mil empresas com dívidas ao fisco e 280 mil que tinham por pagar contribuições à Segurança Social.
Ganhar e perder
Com Maria Luís Albuquerque como ministra das Finanças e Paulo Núncio na secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, o programa de regularização de dívidas de 2013 permitiu ao Estado arrecadar 1253 milhões de euros, dos quais mais de 230 milhões regularizados à Segurança Social.
Com os RERT que intermediaram aqueles dois planos, os valores foram substancialmente mais baixos: em 2005, encaixe foi de 43 milhões, em 2010 ascendeu a perto de 83 milhões e a amnistia de 2012 rendeu 258 milhões (de 3400 milhões de euros de capitais saídos do país irregularmente).
Mas há também contas a fazer àquilo que o Estado perdeu de receita. Em relação ao RERD de 2013, o parecer do Tribunal de Contas (TdC) à Conta Geral do Estado permite ter uma ideia dessa dimensão. No que toca às dívidas à administração tributária, a receita total obtida pela AT foi de 1042 milhões, enquanto a perda de receita em juros compensatórios, juros de mora, coimas e custas representou 417 milhões.
O Tribunal de Contas alerta nesse parecer para o “feito negativo na percepção dos contribuintes sobre o cumprimento das obrigações fiscais” e lembra em relação ao RERD de 2013 que há correcções fiscais com impacto diferido que podem reduzir mais tarde a receita do Estado, por causa da “restituição de valores cobrados relativos a processos de execução fiscal suspensos” e em relação aos quais venha a ser dada razão ao contribuinte devedor.
O plano de 2013 era apresentado pelo Governo como a “derradeira oportunidade” para os contribuintes regularizarem a sua situação tributária e contributiva. Mas três anos depois nascia um novo plano, que o actual executivo tem procurado distinguir dos anteriores, notando o facto de haver planos prestacionais ao longo de vários anos e de não haver diminuição das sanções penais, nem a regularização de dívidas desconhecidas.
O PERES abre a possibilidade de os contribuintes singulares e empresas poderem pagar até 150 prestações (12 anos e meio), tal como acontecia no Plano Mateus. A expectativa do actual Governo é de conseguir um encaixe de 100 milhões em cada ano, uma previsão que o próprio ministro das Finanças Mário Centeno admite ser conservadora.
Cidália Mota Lopes entende que o PERES tem de ser visto à luz do momento económico em que é lançado – um contexto “particularmente frágil”, de necessidade de redução do défice, e de “um crescimento quase nulo de uma economia fortemente endividada”, enfatiza. “Não vejo por que o Estado não possa recorrer a este instrumento à semelhança do que acontece nas empresas quando tentam recuperar os seus créditos (tais como, os planos especiais de revitalização de empresas – PER)”.
Fazer o balanço
Os contribuintes cumpridores e não cumpridores, acredita a fiscalista, “aceitarão melhor estes planos se lhes for explicado o objectivo, a missão, e, numa fase posterior, os resultados”. Isto é: se souberem “quanto é que o Estado arrecadou, e, se não existisse o PERES [ou outros planos], quanto é que o Estado gastaria, em contencioso, por exemplo, para cobrar estas dívidas fiscais”.
Já João Espanha entende que, além da cobrança, “pouco mais fica do que um prémio para contribuintes incumpridores ou uma folga para quem contestou o imposto e não o pagou”. Em relação ao cumprimento das obrigações fiscais, Mota Lopes sublinha que “os planos de recuperação terão de ser sempre medidas de carácter excepcional, justificadas em contextos económicos excepcionais, sob pena de se introduzirem injustiças em relação aos contribuintes cumpridores, bem como em relação aos não cumpridores que não beneficiaram de planos de recuperação, pagando juros e coimas na totalidade”.
Os fiscalistas Serena Cabrita Neto e Priscila Santos, advogadas da sociedade PLMJ, consideram que “os programas de regularização são, muitas vezes, uma forma de o Estado encaixar dinheiro e recuperar montantes que, muitas vezes, em face da situação financeiras da pessoas singulares e colectivas já não é expectável que venham a ser recuperados (sobretudo, atendendo às insolvências e planos especiais de revitalização que temos assistido nos últimos anos)”. Ideal, dizem, seria haver outras “medidas estruturais que agilizassem o pagamento prestacional das dívidas fiscais”.
Em 2002, quando era lançado o Plano Ferreira Leite, o Provedor de Justiça tomou posição, sugerindo o estabelecimento de regimes mais favoráveis para os contribuintes que se revelarem mais cumpridores dos deveres tributários perante o Estado. Mas esta não é uma posição partilhada por João Espanha, que, embora a considere “desejável no plano dos princípios”, não vê como exequível compensar os contribuintes cumpridores.
Também Serena Cabrita Neto e Priscila Santos consideram que, apesar de os programas de regularização tem serem vindo a repetir, “continuam a ser extraordinários”, pelo que “não deverão ser estabelecidos regimes mais favoráveis para os contribuintes cumpridores”. Todos “têm obrigações fiscais (declarativas e contributivas), que deverão cumprir, não devendo ser recompensados por esse cumprimento”.