Carne, espírito e política: as obsessões de Leonard Cohen
Leonard Cohen esteve muito longe de ser apenas um baladeiro. Era um deprimido que não era lamechas, um romântico que recusava o balofo, um político que não perdia tempo com partidos.
Quando Leonard Cohen tinha 15 anos, conheceu um professor de flamenco num parque em Montreal e este não só lhe ofereceu a primeira guitarra como também lhe ensinou os primeiros acordes e as primeiras canções. Cohen não sabia nada sobre o homem e um dia este não lhe deu uma lição pois tinha-se suicidado, evento que teve um grande impacto nele (nele, Cohen; mas pensando bem, também teve grande impacto no professor): as canções e a morte passaram a andar de mão dada na vida do canadiano, que no seu último disco cantava “I'm ready, my Lord”, aceitando por canção a morte e assim completando o círculo.
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Quando Leonard Cohen tinha 15 anos, conheceu um professor de flamenco num parque em Montreal e este não só lhe ofereceu a primeira guitarra como também lhe ensinou os primeiros acordes e as primeiras canções. Cohen não sabia nada sobre o homem e um dia este não lhe deu uma lição pois tinha-se suicidado, evento que teve um grande impacto nele (nele, Cohen; mas pensando bem, também teve grande impacto no professor): as canções e a morte passaram a andar de mão dada na vida do canadiano, que no seu último disco cantava “I'm ready, my Lord”, aceitando por canção a morte e assim completando o círculo.
A morte não era tema alheio a Cohen, que por tanto namorar as sombras foi apelidado de godfather of gloom. Mas também não foi o único tema e será até exagero considerar que o autor de Songs of Love and Hate não ponderou bastas vezes na beleza que se esconde na esperança da manhã seguinte. O que nos leva à súmula: que nos deixou Cohen? Quais são os seus temas?
O universo mental de Cohen não é simples: é judeu e tem particular apreço pelas escrituras judias, sendo que isto não o impede de ser mestre no budismo zen da escola Rinzai – nos anos 1990 passou cinco anos num mosteiro zen à saída de Los Angeles e tornou-se amigo do mestre Joshu Sasaki Roshi, que já vai nos 105 anos e o ensinou a fazer um bom Bloody Mary. Mais recentemente interessou-se pelo misticismo hindu sendo que também tem um interesse particular no sufismo.
Isto não é trivial e não é inteiramente compreendido por uma boa parte do seu público. A demanda espiritual, como o próprio admitiu várias vezes, é uma tentativa de compreensão ontológica que nele parece, por vezes, travar uma batalha contra a depressão endógena de que padeceu toda a vida – e que marca temas como The darkness (de Old Ideas) ou a tremenda Avalanche, de Songs of Love and Hate. Ao Guardian, em 2012, Cohen falava dessa depressão “enquanto pano de fundo de angústia e ansiedade, o sentido de que nada corre bem, que o prazer é impossível e que todas as nossas estratégias culminarão em ruína”. Já perto do fim libertou-se dela: vítima de um cambalacho que lhe levou todo o dinheiro, atirou-se à estrada e esse mundo prático, de sobrevivência, trouxe-lhe a paz que tanto procurou (como por mais do que uma vez afirmou) nas drogas, no álcool, nas mulheres, nas canções, na leitura e na religião, na escrita (de caracteres e de canções).
E no entanto ele era possuidor de um humor requintado e perseguia mulheres. O amor não foi só o amor: foi o caminho que o levou até às musas (e o afastou delas). Marianne e Suzanne não são apenas mulheres – são musas, as indutoras do amor. Talvez ninguém tenha escrito tanto sobre o amor: de uma noite, em Chelsea Hotel no 2, masoquista em I'm your man, irreprimível e condenado em Let's sing another song, boys (a mais bela das canções), simplesmente devasso em Don't go home with your hard on (o título é auto-explicativo) ou sem adjectivo que o qualifique em Famous blue raincoat (a mais bela das canções).
Não vale a pena esconder que por mais que o espiritual e o carnal se encontrem nas canções de Cohen, na vida foram muitas vezes inconciliáveis. Se a traição e o abandono fazem parte do seu menu amoroso, o desespero surge não raro como inevitabilidade – o Cohen dos três primeiros discos é muito isso, ao ponto de cantar “One hand on my suicide/ one hand on a rose”, em Stories of the street.
Mas esse é o preço a pagar pela liberdade, e a liberdade de Cohen não é apenas a externa, política, que encontramos na segunda fase da sua carreira, dos sintetizadores, a partir da década de 1980 – como em Democracy, por exemplo, ou First we take Manhattan. É também e sobretudo a liberdade interna de quem sabe que cada um arca o peso dos seus actos e uma escolha implica uma perda – é isso que está em Bird on a wire. A política, a “simples” política que é feita das relações entre uma comunidade veio depois, quando Cohen aprendeu a socorrer-se da ironia para reflectir as contradições eternas que grassam através dos tempos e que encontramos – encontramo-la implícita ou explícita em There is a war ou Everybody knows.
Tornou-se um apreciador da sabedoria misteriosa que se encerrava num aforismo e para o fim a sua escrita tinha cada vez mais esta dimensão. Uma famosa linha de Anthem, “There is a crack in everything, that's how the light gets in”, é na realidade uma variação de Rumi, poeta sufi do século XIII. Mas Cohen não era um profeta nem um pregador, apesar de tudo: a simples consciência que tinha dos seus roubos conferia uma dimensão humorística à maior parte dos seus trabalhos.
Um deprimido que não era lamechas, um romântico que recusava o balofo, um político que não perdia tempo com partidos, Cohen impregnou as suas canções de dúvida, e saltou de tema em tema, de obsessão em obsessão não como um pós-moderno auto-indulgente, antes como um xadrezista clássico à conta com peças que se recusam a mover-se no sentido pré-determinado. Não fez xeque ao rei, mas nunca mais veremos peões tão belos.