Estados Unidos: O homem que criou o Presidente perfeito não quer este Presidente
Olhando para o Presidente Bartlet (o da ficção) não é difícil perceber porque é que Aaron Sorkin não quer o Presidente Trump. O argumentista de Os Homens do Presidente escreveu à mulher e à filha depois da vitória do candidato republicano. Vale a pena ler a carta.
É a carta de um marido, de um pai, escrita a quente, ainda sob o choque de ver Donald Trump eleito para a Casa Branca. Quem a escreve é Aaron Sorkin, o autor de Os Homens do Presidente, a popular série que (quase) nos fez acreditar que um Presidente norte-americano pode ser perfeito.
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É a carta de um marido, de um pai, escrita a quente, ainda sob o choque de ver Donald Trump eleito para a Casa Branca. Quem a escreve é Aaron Sorkin, o autor de Os Homens do Presidente, a popular série que (quase) nos fez acreditar que um Presidente norte-americano pode ser perfeito.
“Bom, o mundo mudou na noite passada e eu não consegui proteger-nos”, escreve Aaron Sorkin numa carta à mulher Julia e à filha Roxy, de 15 anos, publicada pela revista Vanity Fair. “Esta é uma sensação terrível para um pai. E eu não vou tentar dourar a pílula – isto é verdadeiramente horrível.”
A carta, dirigida “às miúdas Sorkin”, serve também para as alertar para os perigos que decorrem da vitória do multimilionário, incentivando-as a “combater a injustiça” onde quer que estejam e a manter a esperança nos tempos difíceis que aí vêm, tempos em que a América será governada por um homem cuja “estupidez abjecta” foi glamourizada para ser entendida como o discurso de alguém que está simplesmente à margem, combatendo o sistema.
“Está longe de ser a primeira vez em que o meu candidato não ganha (na realidade é a sexta), mas é a primeira vez que um porco verdadeiramente incompetente com ideias perigosas, sérios distúrbios mentais e sem qualquer conhecimento do mundo ou vontade de aprender ganha”, escreve o argumentista que já recebeu um Óscar da Academia por A Rede Social e que “sentou” na Casa Branca um Presidente que não podia ser mais diferente de Donald Trump. E não estamos só a falar de partidos.
Bartlet vs. Trump
O personagem que Sorkin criou numa das mais bem amadas séries televisivas norte-americanas de sempre – The West Wing no original, uma produção da NBC que passou entre 1999 e 2006, recebendo três Globos de Ouro e 26 Emmys – é Jed Bartlet (interpretado pelo incrível Martin Sheen), um democrata do New Hampshire, Nobel da Economia, com uma integridade à prova de bala.
A série, que se passa nos bastidores da Casa Branca e acompanha os dois mandatos de Bartlet – o guião pode ser entendido como simplista porque muitas vezes apresenta uma visão maniqueísta do mundo, dividindo-o entre bons e maus, com os primeiros a vencerem quase sempre – mostra um Presidente empenhado em fazer aprovar políticas sociais de apoio aos mais carenciados e de integração da comunidade imigrante. Mostra um Presidente que prefere a diplomacia à guerra e que está sempre disposto a defender os seus aliados no palco internacional, chegando a pôr, lembra esta quinta-feira o diário britânico The Guardian, um latino-americano liberal no Supremo Tribunal.
Olhando para o Presidente Bartlet não é difícil perceber por que é que Aaron Sorkin não quer o Presidente Trump.
Continua o argumentista, na sua carta, que uma vitória de Trump é uma vitória dos seus apoiantes, “os nacionalistas brancos, sexistas, racistas e palhaços […] Homens que não têm direito de chamar a si mesmos homens, que acham que as mulheres que aspiram a mais do que parecer giras são histéricas, feias e em tudo mais merecedoras do nosso desprezo do que da nossa admiração”.
Sorkin está preocupado com as dificuldades que, enquanto mulheres, Julia e Roxy terão de enfrentar, mas está também preocupado com a economia e com a relação que os EUA vão manter com a NATO. Pensar na forma como vão ser tratados a partir de agora “os muçulmanos-americanos, os mexicanos-americanos, os afro-americanos” também o mantém inquieto.
O que fazer perante tudo isto? Receita Sorkin: “Foda-se, vamos lutar (Roxy, chega uma altura em que é preciso usar este tipo de linguagem e essa altura é agora.) Nós temos poder, nós temos voz. Não temos maiorias na Câmara dos Representantes ou no Senado, mas temos representantes. […] A nossa família está suficientemente protegida dos efeitos de uma presidência Trump, mas vamos lutar pelas famílias que não estão. Vamos lutar pelo direito que a mulher tem de escolher. Vamos lutar pela Primeira Emenda [à Constituição dos Estados Unidos, que corresponde a uma declaração de direitos fundamentais] e vamos lutar sobretudo pela igualdade – não por uma garantia de resultados iguais, mas por uma garantia de oportunidades iguais. Vamos erguer-nos.”
Fasquia alta
E se Donald Trump sobreviver ao primeiro ano de mandato sem cometer nenhum “crime” digno de exoneração, se mantiver o mandato, os Sorkin vão esperar três anos para se empenharem a fundo na campanha para eleger o seu sucessor, disse o argumentista , falando directamente à filha – “Querida, será a primeira vez que votas.”
Para os que viram com entusiasmo Os Homens do Presidente é impossível ler a carta de Aaron Sorkin e não pensar em Josiah “Jed” Bartlet e em todas as vezes que associámos realidade e ficção ao comparar uma qualquer notícia de telejornal com uma cena de bastidores daquela Casa Branca em que mandava Martin Sheen, o Presidente erudito que falava latim e gostava de ter sido historiador.
Escreve o editor Matt Shuman na Harvard Political Review, num artigo de 2012, que o que Sorkin faz ao criar Bartlet é “pôr a fasquia alto para as Administrações americanas” que se seguiram, criando “um líder que inspirou toda uma geração”. Não importa se esse líder – uma amálgama de características que o argumentista foi buscar a uma série de Presidentes norte-americanos – nunca existiu na realidade.
Hoje podemos facilmente imaginar Aaron Sorkin a escrever à filha Roxy com esse ideal em mente ou outro qualquer, bem distante de Donald Trump e do seu discurso. E chega a ser enternecedor lê-lo: “A batalha não acabou, ainda agora começou. O avô lutou na Segunda Guerra Mundial e quando ele regressou a casa este país deu-lhe a oportunidade de construir uma vida boa para a sua família. Não vou entregar à sua neta um país moldado por homens estúpidos e odiosos. As tuas lágrimas acordaram-me ontem à noite – [prometo que] nunca mais volto a adormecer.”