Trump ganhou, os deploráveis vingaram-se e a América está em cacos
O populismo floresce onde há um sentimento de insegurança e de ameaça, económica e/ou identitária. Donald Trump manipulou-o habilmente a seu favor, jogando com os medos e revolta da população.
1. Há um século atrás os EUA celebravam triunfalmente a sua identidade nacional como um melting pot, um caldeirão de culturas e de raças que se fundiam numa nova identidade americana. A popularização da expressão deve-se à peça de teatro homónima do judeu britânico Israel Zangwill, The Melting Pot. Na sua exibição inaugural em Washington, na capital federal, em 1908, mereceu o forte aplauso do Presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, que a aclamou do seu camarote: “é uma grande peça Sr. Zangwill, uma grande peça!” Em The Melting Pot Israel Zangwill combinou elementos do clássico drama romântico de William Shakespeare, “Romeu e Julieta” — transposto do Renascimento italiano para América / Nova Iorque do início do século XX —, com uma celebração da fusão cultural norte-americana. Os protagonistas, David e Vera, ambos imigrantes oriundos da Rússia, são de diferentes religiões: David é judeu e Vera cristã. O seu amor, impossível na Velha Europa pelas barreiras sociais, religiosas e políticas, tornava-se possível no Novo Mundo onde aquilo que os separava ficou definitivamente para trás. O melting pot é uma metáfora dos EUA como terra prometida e república democrática. As diferentes componentes migratórias fundiam-se num todo harmonioso, gerando uma nova cultura comum e valores cívicos partilhados.
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1. Há um século atrás os EUA celebravam triunfalmente a sua identidade nacional como um melting pot, um caldeirão de culturas e de raças que se fundiam numa nova identidade americana. A popularização da expressão deve-se à peça de teatro homónima do judeu britânico Israel Zangwill, The Melting Pot. Na sua exibição inaugural em Washington, na capital federal, em 1908, mereceu o forte aplauso do Presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, que a aclamou do seu camarote: “é uma grande peça Sr. Zangwill, uma grande peça!” Em The Melting Pot Israel Zangwill combinou elementos do clássico drama romântico de William Shakespeare, “Romeu e Julieta” — transposto do Renascimento italiano para América / Nova Iorque do início do século XX —, com uma celebração da fusão cultural norte-americana. Os protagonistas, David e Vera, ambos imigrantes oriundos da Rússia, são de diferentes religiões: David é judeu e Vera cristã. O seu amor, impossível na Velha Europa pelas barreiras sociais, religiosas e políticas, tornava-se possível no Novo Mundo onde aquilo que os separava ficou definitivamente para trás. O melting pot é uma metáfora dos EUA como terra prometida e república democrática. As diferentes componentes migratórias fundiam-se num todo harmonioso, gerando uma nova cultura comum e valores cívicos partilhados.
2. “O tribalismo está a destruir a América”, a frase é premonitória e antecipa o que tem vindo a ocorrer nas eleições presidenciais de 2016. É da autoria de Robert Reich, antigo ministro do trabalho de Bill Clinton e professor da Universidade de Berkeley. Os EUA tornaram-se “um país mais dividido em termos de classe económica. Cada vez mais os ricos parecem habitar um país diferente do resto. Mas o novo tribalismo da América pode ser visto mais claramente na sua política. Hoje em dia, os membros de uma tribo (que se autodenominam liberais, progressistas e democratas) têm pontos de vista e valores muito diferentes dos membros da outra (conservadores, apoiantes do Tea Party e republicanos). Cada tribo tem ideias contrastantes sobre direitos e liberdades (para os liberais, os direitos reprodutivos e direitos iguais de casamento; para os conservadores, o direito de possuir uma arma e fazer o que quiser com a sua propriedade). Cada uma tem os seus próprios totens (seguro social versus governo reduzido) e tabus (cortes nos direitos ou aumento de impostos) [...], a sua própria versão da verdade (uma acredita na mudança climática e na evolução, a outra não); e os seus próprios meios de comunicação que confirmam as suas crenças. Cada tribo é chefiada por senhores da guerra rivais, cujos combates quase interromperam o governo nacional em Washington. Cada vez mais, as duas tribos vivem separadamente nas suas próprias regiões — Estado azul ou vermelho, zonas costeiras ou do interior, urbanas ou rurais —, com os governos estaduais ou locais reflectindo seus valores contrastantes […]. Mas o facto é que as duas tribos estão a estilhaçar a América, muitas vezes colocando as metas tribais acima do interesse nacional.” (Ver “Tribalism is tearing America apart" in Salon, 25/03/2014).
3. O melting pot explodiu e a América está em crise de identidade. O que é ser norte-americano? Nos últimos tempos as divisões e fracturas internas tornaram-se claramente visíveis para o mundo exterior. Mas o fenómeno não é novo. Pelo menos desde os anos 1990 a sociedade norte-americana é atravessada por aquilo que é designado como “guerras de cultura”. Grosso modo, correspondem ao tribalismo na política norte-americana denunciado por Robert Reich. Com a campanha para as presidenciais de 2016, entre Hillary Clinton e Donald Trump, o tribalismo da política interna dos EUA subiu a um novo e perigoso patamar. Para além das características dos candidatados — ambos mal-amados por grande parte dos eleitores, com especial intensidade no caso de Donald Trump —, esconde-se um problema mais profundo: a extrema diversidade da sociedade. Esta foi acentuada pela mudança radical dos fluxos migratórios, ocorrida partir dos anos 1950. Até aí eram largamente de origem europeia. No último meio século a população oriunda da América Latina, seguida da população com origem na Ásia, constituem os grandes fluxos de crescimento migratório e demográfico, especialmente a primeira. Como consequência, no Sul e Oeste, o espanhol latino-americano ameaça a supremacia do inglês-americano e pode transformar os EUA num Estado bilingue. Quanto ao catolicismo, tende a superar o protestantismo. Os mexicanos são um caso particular, pela sua presença em massa nos Estados do Sul, do Texas à Califórnia, onde a demografia e migrações os projectam como o maior grupo populacional. E esses territórios já foram do México no século XIX.
4. A política interna norte-americana está cheia de tensões e contradições. Ambos os partidos — republicanos e democratas — estão em fase de transição para novas lógicas político-ideológicas e em mutação das suas bases de apoio. Os republicanos, que se vêem a si próprios, laudatoriamente, como o Grand Old Party (GOP), acentuam as suas raízes antigas, datadas de meados do século XIX. Evidenciam o papel quase mítico de Abraham Lincoln, na abolição da escravatura e durante a guerra civil. Mas hoje o partido é bastante conservador, em termos de valores sociais, e profundamente liberal/(neo)liberal na economia. A sua base de apoio mais sólida está entre a população de origem europeia, especialmente aquela que vive nos muitos Estados do interior dos EUA. Quanto aos democratas — que no século XIX tinham a sua principal base de apoio nos Estados do Sul e estiveram, em parte, na origem da guerra civil e da tentativa de secessão da federação norte-americana —, preferem apresentar-se hoje como herdeiros de Franklin D. Roosevelt, das suas medidas sociais e económicas durante a Grande Depressão dos anos 1930. Outro ícone é John F. Kennedy, o primeiro presidente de origem não anglo-saxónica e protestante (ou seja, não WASP-White Anglo-Saxon Protestant), oriundo de uma família de origem irlandesa e católica, visto como progressista. Mas essa era outra América. O Partido Democrata tinha já a preferência dos votos das minorias (leia-se judeus e católicos), ambos tendo por detrás uma cultura europeia e ocidental comum. O movimento pelos direitos cívicos dos afro-americanos estava no seu início. Outras questões de identidade não se colocavam.
5. O Partido Democrata afirma-se como progressista na economia — sendo o que mais defende a intervenção reguladora do Estado e medidas de justiça social fora da ortodoxia (neo)liberal — e suporta os direitos das minorais (afro-americanos, latinos, asiáticos, muçulmanos, etc.). Mas o seu programa ideológico e base eleitoral de apoio está repleta de contradições. Denuncia o Partido Republicano como o partido dos super-ricos, mas, ironicamente, o Partido Democrata também está cheio de super-ricos. Se o Partido Republicano atrai os super-ricos do petróleo (a família Bush, por exemplo) e de outros sectores tradicionais, como o imobiliário — a área de negócio original de Donald Trump —, o Partido Democrata atrai outros super-ricos. Os milionários das novas tecnologias (Apple, Google, Facebook, etc.) e do show business estão entre os seus maiores apoiantes e financiadores. Mais: abandonou grande parte da classe trabalhadora branca aos republicanos. O seu programa progressista — emancipação feminina, igualdade de género, casamento homossexual, etc. — tem boa ressonância entre as classes média e alta, com formação académica, e nos media (CNN, New York Times, Time magazine, etc.). Não apela aos trabalhadores menos qualificados. Nem é coerente com o conservadorismo social das minorias étnicas, que são largamente imbuídas de valores tradicionais, embora com tonalidades não ocidentais (latinos, asiáticos, muçulmanos, etc.). Basta ver que nenhum país muçulmano encara, sequer, a possibilidade de casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou da igualdade de género, tal como a conhecemos no Ocidente. Por isso, paradoxalmente, o seu programa progressista depende do apoio de minorias fortemente tradicionalistas.
6. A intensificação da diversidade cultural abriu uma nova linha de fractura paralela às clássicas divisões económicas entre ricos e pobres, entre privilegiados e excluídos. Esta tornou-se tanto ou mais explosiva do que as fracturas tradicionais de riqueza. O liberalismo/(neol)liberalismo excessivo da economia norte-americana idolatra sistematicamente os vencedores e esquece os vencidos da competição económico-empresarial. Abriu a porta a uma globalização agressiva e desigual. Esse é o problema criado pela direita republicana desde os anos Reagan, na década de 1980. Quanto à esquerda democrata, embora com um contrapeso meritório a nível social, abriu a caixa de pandora das políticas de identidade com o movimento da New Left a partir dos anos 1960. Apesar do mérito de terem contribuído para eliminar discriminações, geraram, também, um efeito perverso de fragmentação. Ao desconstruírem os mitos fundadores da identidade nacional norte-americana — dos pais fundadores WASP e do melting pot —, fizeram sobressair as diferenças culturais. A diversidade cultural foi elevada a novo mito constitutivo da federação. Mas antes de ganhar raízes já explodiu também. Donald Trump foi o grande incendiário nesta campanha eleitoral. Mas o substrato sociológico que criou o terreno para a combustão é-lhe anterior. Onde antes havia americanos (ainda que sob a ficção de um melting pot e com uma identidade hegemónica fundamentalmente de origem europeia, masculina e judaico-cristã), agora há americanos brancos, WASP, mulheres, índios, afro-americanos, latinos, asiáticos, judeus, muçulmanos, homossexuais, etc. Os pais fundadores são menosprezados como dead white males. As tribos são muitas. A discórdia também. Tal como as grandes diferenças de riqueza, uma grande diversidade é má para a democracia. O populismo floresce onde há um sentimento de insegurança e de ameaça, económica e/ou identitária. Donald Trump manipulou-o habilmente a seu favor, jogando com os medos e revolta da população.
7. A campanha do Partido Democrata esteve cheia de erros, o maior dos quais, provavelmente, foi a escolha da própria Hillary Clinton como candidata presidencial. Esta foi vista por muitos eleitores, mesmo entre os apoiantes naturais do Partido Democrata, como a tentativa de perpetuação de uma elite oligárquica (a dinastia política dos Clinton) no poder. Para além disso, a sua arrogância moral, típica das elites, e o ataque indiscriminado ao eleitorado de Trump — qualificando os seus eleitores como um “cabaz de deploráveis” —, teve, provavelmente, o efeito contrário: mobilizou-os para irem maciçamente votar. A imprensa norte-americana vista como referência de bom jornalismo — do New York Times à CNN, passando, pelo Huffington Post até ao Washington Post e à Time magazine etc. —, também se saiu muito mal. Paradoxalmente, terá sido também uma das grandes responsáveis pela vitória de Trump. Primeiro, tratou-o como uma curiosidade dando-lhe grande cobertura pelas afirmações provocatórias, esperando divertir-se com isso e que este dividisse os republicanos. Depois, já candidato oficial, e vendo o perigo da sua vitória, passou para o extremo oposto. Perdeu objectividade nas notícias e prestou-se à divulgação de escândalos vazados deliberadamente pelo Partido Democrata. As revelações da WikiLeaks e Julian Assange — até aí um ícone da liberdade de imprensa e da transparência —, tornaram-se incómodas e eram desvalorizadas. O excesso de partidarismo e proximidade com os democratas foi contraproducente. Parecia dar razão às acusações de corrupção e de fraude feitas por Trump. Claro que o Partido Republicano fez o mesmo com a imprensa que lhe é próxima — Fox News, New York Post, Washington Examiner, etc. — mas essa nunca foi vista por ninguém, a não ser pelos republicanos mais acérrimos, como exemplo de imprensa de qualidade. Quanto às sondagens — e previsões de muitos especialistas —, falharam mais uma vez. A previsão da vitória numa eleição com um sistema eleitoral complexo, ainda por cima com candidatos com estas características, deveria ter merecido particulares cuidados e reservas. Tal como aconteceu no Brexit, o efeito de pressão social sobre os deploráveis fez ricochete. Não querendo revelar o seu voto, não entravam nas previsões. Menosprezados pelas elites e espicaçados no seu amor-próprio, os deploráveis vingaram-se. O resultado está à vista: Trump ganhou e a América está em cacos.
Investigador