A vitória de Trump: crónica de dois futuros
O cisne negro, o altamente improvável, voltou a acontecer: Trump ganhou as eleições americanas. É fundamental compreender o que aconteceu para não nos deixarmos dominar pelo pessimismo niilista.
O cisne negro, o altamente improvável, voltou a acontecer: Trump ganhou as eleições americanas. É fundamental compreender o que aconteceu para não nos deixarmos dominar pelo pessimismo niilista.
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O cisne negro, o altamente improvável, voltou a acontecer: Trump ganhou as eleições americanas. É fundamental compreender o que aconteceu para não nos deixarmos dominar pelo pessimismo niilista.
Trump ganhou depois de uma campanha que fraturou a América por linhas raciais, com o candidato republicano a fazer um apelo xenófobo ao voto dos brancos e Hillary Clinton a optar por um discurso elitista aos afroamericanos e latinos. Nenhum propôs um projeto para toda a América . Trump cavalgou a inquietação da velha classe média americana – aqueles a quem Clinton chamou deplorables – afirmando que o outro, nomeadamente de origem mexicana, é a causa da sua decadência.
Trump serviu-se da doutrina de Samuel Huntington, baseada nos temores dos herdeiros dos primeiros colonos. Em 2004, em Quem somos? Desafios à identidade americana, Huntington afirma que o credo democrático americano, segundo ele de inspiração branca e protestante, está seriamente ameaçado pelas mutações demográficas nos Estados Unidos, que farão com que os brancos não hispânicos sejam uma minoria em 2050, passando de 61,8%, em 2015, para uns prováveis 46,6% em 2050. Para Huntington, ao contrário dos WASPs (brancos, anglo-saxónicos, protestantes), os católicos mexicanos consideram “que ser pobre é o caminho para a salvação eterna” e não valorizam a democracia e a liberdade, porque a sua principal fidelidade “é a família”.
O nacionalismo identitário, o grande mal do nosso tempo, está condenado ao fracasso, porque as sociedades são e serão cada vez mais diversas. Mas o que facilita o caminho aos políticos populistas conservadores não são só questões de identidade, é também o impacto de crise de 2008. A classe média, americana e europeia, que estagnou ou entrou mesmo em declínio, culpa por essa situação o chamado sistema, uma combinação dos partidos políticos com o grande capital financeiro, que deixa os cidadãos sem real alternativa politica no quadro partidário – a chamada democracia sem voto. O paradoxo é que os indignados da direita que apoiaram Trump, ao defenderam um individualismo radical e o desmantelamento do estado social mais não fazem do que favorecer o 1% dos mais ricos, os mesmos que responsabilizam pelo seus males.
Trump também ganhou porque o Partido Democrata, numa opção suicidária, escolheu a candidata mais identificada com o sistema, com a corrupção da política e dos políticos. De nada lhe valeu ter mais de mil milhões de euros para financiar a sua campanha (o dobro de Trump), nem o apoio das elites política, cultural, jornalística e financeira, ancoradas na costa leste. Bem pelo contrário, quanto mais apoio reunia, mais Clinton era vista como parte dos que dominam, dos que não compreendem as preocupações de uma parte significativa da população. As redes sociais retiraram o monopólio às elites, nomeadamente aos meios de comunicação tradicionais, que acabaram em circuito fechado, a pregar para os seus leitores, desconectados com uma parte significativa da população.
Finalmente Trump ganhou porque o Partido Democrata boicotou Bernie Sanders. Sanders representava o outro futuro possível, os sectores progressistas que compreenderam as razões do descontentamento de largos setores da cidadania e que propõem uma reforma do sistema de financiamento partidário para pôr termo à corrupção do voto e criar uma alternativa ao pensamento económico único. Talvez a derrota de Hillary dê aos indignados progressistas uma nova oportunidade para reformarem o Partido Democrata e defenderam uma perspetiva inclusiva da América.
Estão errados os democratas que olham com a mesma desconfiança para o populismo conservador de Trump e para os indignados progressistas (uma grande lição a ter em conta na Europa, que nos deve impedir de avaliar o Podemos, em Espanha, apenas pelos erros da sua inexperiência política). Se queremos salvar a União Europeia do efeito que o sucesso do populismo de Trump poderá ter em França, por exemplo, é preciso aceitar a necessidade de reformas profundas, tornando os nossos sistemas democráticos mais participativos e mais políticos, menos dependentes do beneplácito do mercado. A outra narrativa, a que aceita a diversidade e a multiculturalidade como benesses, a que considera que a justiça social é um direito, a que defende o real poder do voto, é possível e é certamente o grande combate político do nosso tempo.
Antigo Director do Instituto de Estudos de Segurança da União Europeia