O populismo e as suas lengalengas
A imprecisão terminológica e conceptual do termo “populismo” explica em parte a sua notável mobilidade – e o seu sucesso –, tal como explica parcialmente a sua sobre-exploração e banalização no espaço público.
Talvez nunca o termo “populismo” tenha comparecido tanto no espaço público como nos nossos dias. E não só a propósito de Trump, Marine Le Pen, Nicolás Maduro ou Rodrigo Duterte. O vocábulo tornou-se moeda corrente no debate e no comentário político e é frequentemente usado como forma de estigmatização da opinião divergente.
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Talvez nunca o termo “populismo” tenha comparecido tanto no espaço público como nos nossos dias. E não só a propósito de Trump, Marine Le Pen, Nicolás Maduro ou Rodrigo Duterte. O vocábulo tornou-se moeda corrente no debate e no comentário político e é frequentemente usado como forma de estigmatização da opinião divergente.
Não obstante, poucos evitam dar ao termo um uso equivocado ou abusivo. Assiste por isso alguma razão a Manuel Loff quando este critica a leviandade com que as forças políticas do centro qualificam de populista a contestação oriunda dos extremos do espectro partidário (“A lengalenga do ‘populismo’”, PÚBLICO, 29/10). Ao denunciar esse abuso, Manuel Loff suscita o problema da definição e caracterização do populismo. Só é pena que acabe por desfigurar o debate com simplificações e analogias forçadas (para não falar de afirmações desprovidas de qualquer rigor, como a de que o PS andou 40 anos a recusar a presente solução governativa).
O populismo teve e tem múltiplas encarnações, referentes e significados. Pode identificar um tipo de regime político, um movimento, uma ideologia. Surge-nos em formulações autoritárias e anti-autoritárias (como na democracia referendária da Suíça). Há um populismo de direita como há um populismo de esquerda. É tal a sua polivalência e elasticidade que raramente o encontramos numa forma “pura” – se é que esta existe –, antes o vemos miscigenado com outros regimes e ideologias: com o nacionalismo, o fascismo, o liberalismo, o socialismo, o islamismo.
Encontramo-lo hoje na América Latina, porventura o seu principal laboratório, bem como nos regimes pós-totalitários de alguns países ex-comunistas, e em Estados do mundo árabe e islâmico.
A imprecisão terminológica e conceptual do termo “populismo” explica em parte a sua notável mobilidade – e o seu sucesso –, tal como explica parcialmente a sua sobre-exploração e banalização no espaço público.
Mas apesar do seu carácter heteróclito e flutuante tem sido possível isolar um conjunto de traços constantes: a idealização e adulação do “povo”, ungido de virtude, bondade e discernimento infinitos; o culto do chefe carismático, “autêntico”, que está em contacto directo com o povo e fala pois em seu nome, desprezando ou dispensando a mediação consubstanciada nas instituições representativas; a diabolização de um inimigo externo que interfere e chantageia, quando não conspirara abertamente contra o povo, articulada com uma retórica patriótica ou soberanista; a denúncia do sistema e das elites (identificadas, consoante o caso, com os tecnocratas, os oligarcas, os políticos, os partidos, os intelectuais, etc., que “confiscaram” a democracia); narrativas baseadas em antinomias primárias (os bons e os maus, nós e eles, o povo e a casta, os pobres e os ricos, os patriotas e os traidores); a denúncia de uma falsa democracia (de uma democracia “formal”, manipulada ou tida por decadente e inútil) e a promessa de uma democracia “verdadeira”; um conteúdo programático rudimentar ou até vazio.
Tome-se, como exemplo de um populismo que faz o pleno destas características, aquele que campeia actualmente na Venezuela.
Se nos ativermos a este conjunto de traços, vemos que raramente tem cabimento etiquetar de populistas algumas das forças partidárias envolvidas no debate político. Acontece que, para além de poder traduzir uma ideologia específica, um tipo de regime ou um movimento de massas, o populismo é também uma retórica, um discurso ? que troca a reflexividade pela reactividade e a razão pela emoção. O populismo é um estilo (com a sua estilística e a sua dramaturgia) que explora e canaliza a exasperação e a hiperbolização que caracterizam os tempos difíceis. Não por acaso, a retórica populista instala-se e prospera onde há lugar a crises: crise económica, crise institucional, crise de representatividade.
Isto é, o populismo singra em períodos de inquietação ou transição, dirigindo o ressentimento e a frustração acumulados contra os estrangeiros, contra os privilegiados, contra os políticos e outros alvos.
Um dos mais eficazes expedientes populistas é o de eludir a complexidade do real e optar por explicações simplistas, fórmulas orelhudas e estribilhos de mural. São exemplos recentes disso os vitupérios atirados à União Europeia como sendo “antidemocrática”, a diabolização dos tratados comerciais ou a culpabilização do trabalhador estrangeiro que vem “roubar” o trabalho ao nativo.
O populismo é uma lengalenga que infantiliza o mundo e a política. Ora, é nessa lengalenga que os extremos político-partidários competem, é nela que os extremos se tocam inequivocamente.